quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Casulas com bulho – comida de Entrudo (por Antero Neto)

Quando há cerca de três anos atrás um grupo de amigos resolveu avançar para a formalização de uma confraria gastronómica em Mogadouro, não sabia ainda qual o prato que devia eleger como emblema da mesma. A indefinição devia-se à riqueza que a gastronomia local apresenta. Foi então que o falecido Manuel da Graça avançou com a proposta das Casulas. A ideia colheu o entusiasmo geral dos futuros confrades, uma vez que se trata de um prato tipicamente transmontano e apreciado pela generalidade das pessoas.As casulas são conhecidas por diversas designações. As mais vulgares no concelho de Mogadouro são “casulas”, “cascas” ou “vasas secas”. Para se obterem as casulas há que colher o feijão dentro da vagem (ou vasa) ainda verde. Depois a vagem é seccionada em pequenos pedaços. Posteriormente colocam-se ao sol, espalhadas em cima de uma manta, ou de palha, até secarem. Uma vez secas, guardam-se num saco de pano, à espera dos dias frios, para se cozerem com o também tradicional bulho.O bulho (igualmente conhecido por “butelo”, “palaio” ou “chouriça de ossos”) é o companheiro indissociável das casulas. Sem estes dois “parceiros” o cozido não tem história. O bulho é feito a partir da carne junto ao espinhaço do porco. Leva muitas tenrilhas e pontas de ossos, que lhe conferem um sabor típico, pois as carnes junto aos ossos são as mais apaladadas. Esta característica peculiar, faz com que seja um enchido de curta conservação, uma vez que tem tendência a ganhar sabor a ranço com muita rapidez. Daí que seja consumido tradicionalmente no domingo gordo, pouco tempo após a matança do porco. Hoje em dia, encontra-se muito divulgado nos certames de enchidos. Contudo, poucos o sabem fazer como mandam os preceitos ancestrais. A maior parte dos “fabricantes” modernos usa e abusa das costelas do animal para encher o bulho. Quando, na realidade, só as pontas das mesmas deveriam ser utilizadas (imperativos mercantis, que desvirtuam a tradição).
E para que o prato fique completo, deve-se adicionar-lhe batatas, orelha, focinho e pé de porco, previamente salgados, bem como as “botchas”, que ajudam a dar riqueza e espessura ao paladar do prato. As “botchas” são um enchido que tende a cair em desuso. São confeccionadas com diversas carnes do porco, tendo como predominante os pulmões (ou “botches”) do animal. Cozidas, a acompanhar um arroz de grelos, ou as casulas, são um autêntico pitéu.
Quanto à história das casulas, ela perde-se na penumbra dos tempos. A corrente maioritária defende que este prato nasceu nas casas mais pobres que vendiam o feijão aos ricos e guardava as cascas para fazer o caldo.
Nada de mais infundamentado. Efectivamente, as casulas têm relevância porque, como vimos, são cortadas em verde, com o feijão no seu interior. Uma coisa é inseparável da outra.
Finalmente, para preparar este manjar delicioso, devem-se colocar as casulas a hidratar de véspera e cozer todos os ingredientes juntos, tendo em atenção os diferentes tempos de cozedura. No final, reserva-se a água com algumas casulas e juntam-se-lhe batatas picadas em pequenos cubos; deixa-se cozer, rega-se com azeite cru e obtém-se uma apetitosa sopa.
 Se puder, coza tudo em panela de ferro ao lume. Vai ver que a diferença é significativa.

Nota : na segunda fotografia estão os fundadores da Confraria Gastronómica "As Casulas".
Publicado no blogue em 11/02/2011

8 comentários:

  1. Este Amigo tem cá um jeitão para fazer crescer água na na boca das pessoas.
    Mas até lê-lo , já é uma delícia .

    Abraço
    Júlia

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  2. E o colestrol que entre de férias...

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  3. Vilarandelo Umdiaumaimagem: bela confraria a que tem tão ilustre prato como referência!

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  4. Sofia Jeronimo Jeronimo: Boa ideia a de criar uma confraria do butelo. O que não está correto, em pleno séc. XXl, é excluir as mulheres. Para ser mais genial, também as deviam excluir da cozinha!...Não basta serem elas a fazê-lo, e ainda têm que o cozinhar para os homens comer, francamente!...

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    1. Minha cara, as mulheres não foram excluídas. Se vir com atenção a fotografia, irá detectar duas. Actualmente há muitas mais. Mas, até me atrevo a dizer-lhe que algumas delas são lá bem escusadas...

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  5. Meu caro Lelo Brito... sobre as "cascas", "casulas", "vasas" ou "palhada", muita coisa se poderia contar. Acerca do "butelo", "bulho", "palaio", "chouriço de ossos" (não chouriça de ossos), "piriquito", "pastor"... e por aí fora... muitas mais histórias se conseguem contar

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    1. Recordando o saudoso e culto gastrónomo Afonso Praça,felgarense de nascimento (Torre de Moncorvo ) e transmontano antes de quebrar que torcer, lembro -me pouco antes de ele morrer ( creio que em 3 de Maio de 2003 )que o ouvi,já adoentado, num programa da SIC em jeito rematar a conversa nada melhor que uma sopinha de feijão acompanhada de umas sanchas.Também sabemos que a última refeição ,em sua casa, na companhia de Maria de Lurdes Modesto deram primazia ás " casulas" com " butelo".Tais "casulas" são feijões em vagem cortadas ainda a meia cura durante o Verão/Outono a fugirem para o Inverno onde se resguardam em sacolas,diligentemente feitas por artesãs,tal como a Tia Elisa Praça as chegou a fazer com os restos de orelos pois que em sua casa tinha tear..Voltando ao Praça,e publicá-lo é também uma forma de o homenagear,vejamos o que ele escreveu de parceria com Maria de Lurdes Modesto na obra " Festas e Comeres do Povo Português,vol.1,da Verbo a p168.a propósito do " Bulho"- Enchido Ensacado na tripa grossa,feito com as pontas das costelas,outros ossos tenros e miúdos, e ainda o rabo do porco....Vai-se a ver, aquilo que em Mogadouro recebe o nome de bulho chama-se noutras terras palaio e butelo..já agora que se aproxima o Carnaval e, afastada a Quaresma bom apetite e engenho para os " casulos" e o "Butelo" de preferência cozinhado em panela de ferro e com lenha de carvalho,oliveira ou amendoeira que os carrascos estão proibìdos de serem cortados.

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    2. Não. Não se trata de erro do escrevente. São efectivamente "chouriças de ossos" e não "chouriços de ossos". Aliás, cá na santa terrinha, a palavra "chouriço" só se usa para apodar um golo tirado com grande dose de sorte. Por cá ou se comem "chouriças", ou "salpicões"."Chouriço" é produto de verve de citadino urbanóide (com todo o devido respeito).

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