domingo, 16 de março de 2014

TORRE DE MONCORVO - HISTÓRIAS DE EMIGRAÇÃO

Mulheres imigrantes portuguesas: experiências e expulsão

Esta pesquisa foi inicialmente desenvolvida no acervo do DEOPS/AESP, que conta com mais de 160 mil prontuários e 9 mil dossiês. Nesse vasto corpo documental, foram identificados, até o momento, 5.371 prontuários de portugueses, dos quais apenas 237 são prontuários de mulheres (4,5% do total).
Esta história teve seu início alguns anos antes, em 1910, quando o vapor que trazia a família Duarte aportou no Brasil. Manuel Joaquim Duarte e Tereza de Jesus Panda vieram de Moncorvo, Distrito de Bragança, Trás-os-montes. Eles traziam três filhos: a menina Maria Beatriz Duarte, nascida em 20 de dezembro de 1899, e outros 2 varões.
Maria Izilda Santos de Matos
www.historica.arquivoestado.sp.gov.br

Nota: Pesquisa para o blogue efectuada por Carina Teixeira.
Publicado em Abril de 2011

9 comentários:

  1. As portuguesas no DEOPS

    Esta pesquisa foi inicialmente desenvolvida no acervo do DEOPS/AESP, que conta com mais de 160 mil prontuários e 9 mil dossiês. Nesse vasto corpo documental, foram identificados, até o momento, 5.371 prontuários de portugueses, dos quais apenas 237 são prontuários de mulheres (4,5% do total).

    Entre as portuguesas “prontuariadas” foram encontrados vários motivos para as averiguações, com destaque para os pedidos de autorização para funcionamento de casa de cômodos, pensão e hotéis (32% dos casos), querelas entre proprietárias e inquilinos (15%) e infrações à lei de economia popular (17%).

    As primeiras destas questões vinculavam-se à significativa presença das portuguesas como proprietárias de pensão e de casas de cômodo (fornecedoras de refeições). Para autorização de funcionamento desses estabelecimentos e comprovação de seu perfil familiar, era exigência legal um documento de antecedentes da proprietária, fornecido pelo DEOPS. Cabe destacar que esse tipo de serviço expandiu no processo de crescimento urbano da cidade devido à alta demanda por habitação e alocação. As pensões e casas de cômodo estavam em toda a cidade, particularmente nas proximidades das estações ferroviárias.

    Neste mesmo quadro de crescimento urbano e dificuldades com moradia, podiam-se observar as várias estratégias de sobrevivência e possibilidade de obtenção de uma fonte de renda utilizada pelas portuguesas, como o aluguel de um cômodo, de um quarto anexo ou de pequeno imóvel. Entretanto, algumas imigrantes eram donas de várias propriedades; viúvas ou herdeiras possuíam pecúlio e altos rendimentos no setor de aluguéis[*2]. Para umas e outras, as relações estabelecidas entre locatários e locadores nem sempre foram tranquilas, como se pode perceber pelos conflitos descritos nos prontuários.

    Já as infrações de economia popular[*3] denotavam a atuação das portuguesas nas atividades comerciais (açougues, padarias, armazéns, adegas, botequins, restaurantes, confeitarias e pastelarias, quitandas, leiterias). Alguns destes estabelecimentos eram familiares, e para a sua instalação era aproveitado um quarto da frente da própria casa. Outros quartos, mais amplos, mostravam uma ascensão no ramo comercial
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  2. O comércio exigia trabalho árduo, uma longa jornada no balcão, implicando habilidades como cativar a clientela, ser simpática e gentil com os compradores, ceder nos preços, ouvir pacientemente reclamações contra a carestia e a qualidade dos produtos, além de aceitar gracejos.

    O balcão era o palco privilegiado das manifestações de antilusitanismo, e tinha-se de conviver com as tensões em torno das cobranças, os atrasos e recusas no pagamento das contas consideradas abusivas, as hostilidades, muitas vezes as brigas, denúncias à polícia, provocações e insultos.

    Particularmente, no período da Segunda Grande Guerra, observam-se nos prontuários as solicitações de salvo-conduto, autorização de transferências e mudanças. Tais práticas eram exigidas para todos os estrangeiros, sendo o controle maior para os imigrantes dos países do Eixo: italianos, alemães e japoneses.

    Os pedidos de regulamentação de documentos e da situação no país apareceram por todo o período estudado. Foram menos frequentes os casos de desacato à autoridade, golpes e usura.

    As poucas situações de prisões abarcavam desde simples investigação a episódios mais graves, como “elemento suspeito e/ou indesejável”. Particular é o caso apresentado no Prontuário de número 111.170/1943, envolvendo a portuguesa Rosa da Silva Espírito Santo, tecelã da Fábrica Jafet. Rosa foi acusada pela colega de trabalho Petronilha Ferreira (brasileira, negra) por ofender o então presidente da república Getúlio Vargas, na ocasião do recebimento do salário devido ao desconto de 3% de bônus de guerra. As denúncias de injúria e calúnia, nem sempre com provas concretas, baseadas na palavra de um contra o outro, acarretou o aumento de vigilância geral, abrindo brechas para vinganças e acertos de contas com desafetos, adversários ou inimigos. Nas acusações, sempre acolhidas, apareciam argumentos frágeis, parciais, tolos, algumas vezes chegando ao ridículo, atestando, majoritariamente, motivos pessoais, também presentes nos despachos[*4].

    Dos 237 prontuários de portuguesas pesquisados foram localizados três casos de encaminhamento para expulsão. Porém, apenas uma delas foi expulsa, Maria Beatriz Duarte, cujo processo está localizado no Arquivo Nacional, -Rio de Janeiro.

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  3. Era uma terça-feira, 6 de fevereiro de 1934, e faltavam somente 6 dias para o carnaval. Naquela quente tarde de verão, como fazia frequentemente, a portuguesa Maria Beatriz Duarte se arrumou muito bem, saiu de sua casa na Liberdade, Rua Barão de Iguape, n. 15, e dirigiu-se até a Rua Direita.

    O movimento no Centro era intenso. Por volta das 16h30, Maria Beatriz entrou nas Lojas Brasileiras, n. 37 da Rua Direita, dirigiu-se à seção de bijuterias para conversar com as jovens balconistas Vera e Judith, como já tinha feito outras vezes. Mas, repentinamente foi surpreendida pela polícia, com ordem de prisão, dita em flagrante. Frente ao tumulto estabelecido, foi levada à Delegacia de Costumes e Jogos.

    Na Delegacia, foram colhidos os depoimentos das duas jovens irmãs que acusavam a portuguesa Maria Beatriz de aliciá-las para prostituição. Em seguida, a suspeita foi liberada. Na acareação realizada dez dias depois, em 16 de fevereiro, a acusada negou terminantemente o que lhe imputavam, desmentindo as provas apresentadas.

    Esta história teve seu início alguns anos antes, em 1910, quando o vapor que trazia a família Duarte aportou no Brasil. Manuel Joaquim Duarte e Tereza de Jesus Panda vieram de Moncorvo, Distrito de Bragança, Trás-os-montes. Eles traziam três filhos: a menina Maria Beatriz Duarte, nascida em 20 de dezembro de 1899, e outros 2 varões.

    Não obstante, o sonho americano apresentaria surpresas e descaminhos. Em 1917, na flor da idade, com apenas 17 anos, Maria Beatriz foi deflorada por Albertino de Campos. A denúncia foi formalizada na delegacia em 24 de setembro de 1917[*5]. Buscava-se remediar a situação com a oficialização do casamento, já que a jovem encontrava-se grávida. Contudo, a acusação não surtiu o efeito desejado – o casamento –, e, em 18 de janeiro de 1918, nasceu a filha ilegítima Mariana dos Anjos, registrada no Cartório de Registro Civil da Bela Vista.

    Reconstituir a vida como mãe solteira, dentro dos rigorosos preceitos de moral, não foi uma opção de Maria Beatriz, que adotou como meio de vida a prostituição, sendo registrada na atividade em prontuário policial desde 17 de fevereiro de 1921[*6]. Os ganhos com a profissão por mais de 12 anos, as economias e controles permitiram que de inquilina das casas que frequentava passasse a proprietária de rendez-vous, encontrando-se prontuariada nessa função em 18 de maio de 1932. Seu estabelecimento se encontrava localizado na Rua Barão de Iguape[*7]. A manutenção e sucesso do rendez-vous exigiam habilidades, como agradar os clientes, manter o ambiente aprazível e sempre disponibilizar novas moças[*8] . Nesse sentido, no dizer do Delegado de Costumes, Maria Beatriz buscava atrair “moças incautas”: “[...] ampliaram as suas atividades arrebanhando para o prostíbulo menores ingênuas, com o fito exclusivo de aumentar os seus lucros, e talvez, para satisfação de sua tara de degenerescência”[*9] .

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  4. As jovens aliciadas e as testemunhas foram ouvidas no dia 16 de fevereiro. Em depoimento, Octavio Souza Soares, gerente da loja, declarou que já observava a senhora alta, sempre bem vestida, que visitava a loja diariamente, conversando com as empregadas da seção, sem nunca adquirir qualquer objeto. Atento, começou a desconfiar, quando soube que ela fazia convites às moças para visitar sua pensão, divulgando que lá elas teriam vida confortável e alegre, chegando a convidá-las para o corso carnavalesco, combinando que ela mesma forneceria as fantasias e todo o necessário[*10].

    No Relatório do Gabinete de Investigação de São Paulo, o delegado Djalma Whitaker de Lima declarava

    Com o desenvolvimento atual do comércio foram abertas diversas casas de objetos de baixos preços, sendo aproveitadas para o trabalho no balcão diversas jovens. Para as cafetinas, foi uma inovação útil, – era um mercado de jovens formosas –, onde poderiam desenvolver suas qualidades de mulheres cínicas e sem escrúpulos na escolha do tipo desejado, para satisfação bestial de seus clientes endinheirados... na esperança de prostituí-las, em proveito próprio. Cheia de promessas tentadoras... prometia as jovens grandes recompensas se aceitassem os seus convites.[*11] (grifos meus).

    Tratava-se das Lojas Brasileiras, que na ocasião serviam no balcão mais de 45 jovens, entre elas Vera e Judith Soares. A constância das promessas indecorosas de Maria Beatriz fez com que elas dessem parte ao gerente, que comunicou à polícia.

    Na sequência dos trâmites, no Relatório ao Gabinete de Investigações afirmava-se:

    Sendo a acusada presa em flagrante quando tentava aliciar as vitimas, passando o cartão com o endereço do seu prostíbulo [...] Como estrangeira não soube agradecer a boa hospitalidade que aqui encontrou, levando já de inicio uma vida que bem mostra as suas qualidades morais. Tratando-se de um elemento indesejável e pernicioso à sociedade, é mister que seja excluída do meio em que a sua presença se torna um empecilho para a boa moralidade dos costumes. Nestas condições, sendo a acusada de origem portuguesa, de acordo com o art. 72 da Constituição Federal, vem pedir a sua expulsão do território nacional. 2 de março de 1934.[*12] (grifos meus).

    O decreto de expulsão do território nacional foi assinado pelo Ministro Antunes Maciel em 2 de abril de 1934. Identificava Maria Beatriz Duarte como um “elemento nocivo aos interesses da República”[*13] .

    Impactada pela notícia, Maria Beatriz tomou providências, contratando advogados que encaminharam o Pedido de Reconsideração. Nele, declarava-se a impropriedade da expulsão, a inveracidade das acusações e a calúnia imputada, apresentando como argumentos que o delegado era substituto, jovem, inexperiente e moralista. Também que a acusada não fora presa em flagrante, mas detida arbitrariamente, levada à delegacia e posta em liberdade depois de tudo negar.

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  5. Destacava-se que a acusada morava no Brasil há mais de 25 anos, sem praticar qualquer ato delituoso ou ação irregular, que sustentava a mãe com mais de 80 anos e 2 sobrinhos órfãos e menores. Confirmava-se que ela mantinha pensão de mulheres (“como há por toda parte nesta capital”), mas nunca foi passível de qualquer reprimenda ou punição, já que a sua pensão só era frequentada por mulheres livres e maiores. Principalmente que jamais buscou seduzir menores para a prática da prostituição, sendo falsas todas as declarações neste sentido.

    Nas justificações foram colocados vários comentários sobre as jovens balconistas Vera e Judith. Alegava-se que elas não podiam ser apresentadas como “donzelas ingênuas”, já que eram “‘semi-virgens’ conhecidas, prostitutas de há muito habituadas a atos de depravação, como ‘cópula anal’ conforme testemunho de várias pessoas”[*14] e que se “divertem” à noite em lugares suspeitos nos arredores da cidade[*15] . Alertava-se que as moças, apesar dos parcos ganhos e da família paupérrima, trajavam-se muito bem, passeavam de automóveis e faziam refeições diárias em restaurantes (zonas suspeitas), ostentando um estilo de vida superior, aceitando proteção pecuniária de terceiros.

    Apesar da justificação, em 16 de julho de 1934, o ministro da Justiça e Negócios Interiores negou a reconsideração e manteve a sentença de expulsão. Maria Beatriz, inconformada, entrou com novo pedido, acrescentando a escritura de propriedade do terreno na Rua São Roberto, no Tucuruvi, alegando ser proprietária[*16]. Mesmo assim, em 30 de março de 1935, foi recolhida à cadeia pública e identificada.

    O pedido de habeas corpus[*17] foi encaminhado, sendo respondido mais de cem dias após a prisão. Em 18 de julho de 1935, Maria Beatriz foi posta em liberdade, porém o documento observava que “o Habeas corpus concedido em nada prejudica o efeito da portaria de expulsão.”[*18]

    Cabia nova tentativa, na qual retomava o argumento de ser ela domiciliada no país há mais de 20 anos, proprietária e vítima de calúnia:

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  6. aqui cresceu, sofreu agruras da má fortuna, aqui trabalhou, conseguiu adquirir uma propriedade, aqui perdeu o irmão naturalizado, deixando ao seu amparo 2 sobrinhos órfãos brasileiros e pelo coração e amor na terra em que cresceu.[*19]

    Seguiu-se, em 17 de outubro de 1935, outro pedido de revogação da expulsão, que apresentava uma novidade, uma informação ocultada até então – a Certidão de Mariana dos Anjos, filha de Maria Beatriz, menor e brasileira, nascida em 1918[*20].

    Os vários argumentos não convenceram as autoridades e, em dezembro de 1935, o pedido de revogação foi indeferido. Seguiu-se nova prisão em 6 de janeiro de 1936, e, após alguns dias, ela foi embarcada no Vapor Formosa. Saía do porto de Santos com destino a Lisboa em 30 de janeiro de 1936[*21].

    Cabe lembrar que, em 1936, o Relatório do Gabinete de Investigação para Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo declarou o registro de 276 casas de tolerância, num contexto de intensificação da repressão à prostituição e ao lenocínio:

    [...] segundo os princípios do regulamentarismo, as autoridades públicas de São Paulo mobilizaram amplos esforços visando retirar a zona do baixo meretrício do centro comercial da cidade [...] em 1936, foram fechadas, em São Paulo, 59 casas de tolerância, das quais 52 bordéis e 7 rendez-vous (entre eles o de Maria Beatriz) [...] Posteriormente, foram reabertas 13, sendo 11 bordéis e 2 rendez-vous.[*22]

    O Estado Novo instaurou e/ou aperfeiçoou mecanismos de controle político e social (como o DEOPS), que viabilizaram que os estrangeiros “indesejáveis” fossem investigados, presos e “prontuariados”, na maioria das vezes devido ao envolvimento em questões políticas.

    Entre as várias outras medidas, o Decreto-lei n. 392, de 27 de abril de 1938, destacava que o estrangeiro poderia ser expulso independentemente do período de residência no Brasil, podendo o banimento ocorrer por qualquer motivo que comprometesse a segurança nacional, a estrutura das instituições ou a tranquilidade pública, e também quando condenado por crime político. Pouco mais de um mês depois, o Decreto-lei n. 479, de 8 de junho de 1938, restringia o direito de expulsão, tendo como foco o aspecto da residência – mais de 25 anos – ou ter filhos brasileiros vivos.

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  7. Talvez o conhecimento dessas novas medidas legais fosse o estímulo para o reinício da causa. Em Portugal, Maria Beatriz passou a residir em Lisboa (Rua do Passadiço, 49, 1º andar), entretanto, mantinha-se inconformada.

    Em 1938, Ricardo Amene entrou com recurso junto ao presidente da República, pedindo a revogação do ato de expulsão. Ricardo Amene e Maria Beatriz contraíram matrimônio por procuração em 11 de abril de 1938 e, como marido, ele podia fazer tal demanda. No Recurso, alegava-se que ela foi

    expulsa devido a motivos suspeitos, de invejas e despeitos sempre mal contidos, levaram gratuitos inimigos a procurar por todos os meios a entravar os negócios e a reputação da infeliz e quão trabalhadora portuguesa, tendo para golpe eficaz encontrado elementos eficientes. Os agentes da polícia abriram campanha tenaz contra a casa da vitima Maria Beatriz Duarte, molestando-a sob os mínimos pretextos e as denúncias mais inverossímeis, até que, colimado o plano alcançaram atingir o objetivo que era de qualquer maneira anular a capacidade da referida vitima. Policiais e seus difamadores apanharam-na na cidade quando efetuava compras numa casa da R. Direita.[*23]

    Apesar de questionada a veracidade das declarações em 10 de agosto de 1939, o marido fez outro pedido de revogação do ato de expulsão, anexando a certidão de casamento e nova certidão de nascimento de Marina dos Anjos em 17 de novembro de 1938, pela qual Amene reconhecia a paternidade da jovem. Contudo, os documentos foram considerados falsos, abrindo-se um novo inquérito para averiguação da autenticidade.

    Maria Beatriz prostituta e cafetina rica, proprietária de terreno e dois imóveis em São Paulo, não era casada. O casamento com o despachante e procurador dos seus negócios em São Paulo, Ricardo Amene, que primeiro lhe perfilhou a menor Mariana dos Anjos, efetuou-se muito após a expulsão, quando a mesma não se acha mais em território nacional, e sim em Portugal, terra natal da expulsa [...] os documentos ora juntados estão em flagrante contradição com os anteriormente juntados, sobretudo a nova certidão de nascimento da menor Mariana dos Anjos, que é evidentemente falsa.[*24]

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  8. Apesar de se comprovarem a autenticidade documental, o pedido de reconsideração foi indeferido “apesar dos pedidos constantes de reconsideração do ato de expulsão, que alias foram indeferidos várias vezes, parece-me que, como medida de higiene social, deveriam ser mantidos estes despachos. (16/4/40).”[*25]

    Maria Beatriz não esmorecia e Ricardo Amene entrou com uma nova e comovente súplica de perdão dirigido diretamente ao presidente Getúlio Vargas em 29 de outubro de 1940. Mas, na sentença final, destacava: “Não há razões para revogar, baseando-se na sentença anterior” (8/11/40).[*26]

    O encerramento do processo não permite saber o término da história de Maria Beatriz, Ricardo e Mariana, mas os sonhos de retorno ao Brasil devem ter se mantido até os seus últimos dias.

    A Lógica do Estado autoritário

    O processo da portuguesa Maria Beatriz Duarte permite perceber um conjunto de questões que envolviam os imigrantes portugueses para o Brasil nos inícios do século XX. Os autos mostram as ambiguidades da legislação e das ações ilegais, com destaque para as arbitrariedades da polícia e do Executivo. Em todo o trâmite do processo os procedimentos foram orientados no sentido da expulsão, mas também permite observar a persistência da portuguesa, que, acreditando nas possibilidades das brechas legais, atuou buscando evitar e/ou reverter o decreto de banimento.

    Nos autos, tramitados entre 1934 e 1940, a questão do tempo de residência (mais de 25 anos declarados e comprovados) foi colocada, acrescida de outros argumentos (propriedades, filha brasileira), mas sempre foi desconhecida pelo poderes públicos e relegada.

    O processo, que perdurou por 5 anos e meio, implicou grande empenho de valores. As possibilidades de recorrer contra as ações de expulsão não existia para todos, era dependente das condições econômicas, capacidade de arcar com os honorários advocatícios e com as custas processuais.

    A análise do processo permite observar que o estrangeiro era visto como elemento de desordem social, estigmatizado como portador de maus hábitos, no caso de atitudes e costumes devassos. Nos episódios que envolviam questões de prostituição/lenocínio, as ações buscaram atuar através de normas sanitárias (preventivas) e repressivas (punitivas), que visavam regulamentar o dito “comércio do sexo”, pretendendo proteger a “família, a moral e os bons costumes”. Neste sentido, no processo em várias ocasiões foram explícitas referências à acusada como elemento de “tara de degenerescência”, “mulher cínica e sem escrúpulos”, “elemento indesejável e pernicioso à sociedade”, “um empecilho para a boa moralidade dos costumes”, “a nocividade da expulsa, que como medida de higiene social, o mandado de expulsão deve ser mantido”, “elemento nocivo aos interesses da República”, num discurso marcado por preceitos fortemente eugenistas e nacionali
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  9. Cabe contextualizar que durante a década de 1930, em particular nos anos de 1935/6, houve momentos especialmente repressivos à prostituição na cidade de São Paulo. Também, no mesmo período, ocorreu a ampliação do poder e das funções dos chefes de polícia, com a articulação mais constante e direta entre os órgãos policiais, o Ministério da Justiça e Negócios Internos e a Presidência da República, reduzindo a órbita de ação do judiciário.

    As medidas de restrição à entrada de imigrantes e outras para retirada dos “indesejáveis”, dos que “comprometessem a segurança nacional” ou “fossem nocivos aos interesses dos poderes estabelecidos” foram várias. As disposições legais buscaram legitimar e ampliar as ações do Estado, particularmente do poder executivo (Artigo 72/1891, os Decretos de 1907-1913-1921, a Reforma Constitucional de 1926, a Constituição de 1934 e a de 1937, os inúmeros decretos e decretos-leis dos anos 1930). Essas medidas constituíram um jogo de força constante de adaptação e reorganização de estratégias para ordenar e disciplinar a sociedade, acabando ou restringindo as garantias constitucionais dos estrangeiros residentes, que ficaram a mercê da atuação, quase sempre arbitrária, do Poder Executivo e da própria polícia.

    A expulsão como instrumento de controle social na lógica do estado autoritário, burlou os entraves, utilizou-se de métodos arbitrários (tanto legais como ilegais), atuando através de decretos leis. Encontrava-se inserida num conjunto de medidas para controlar as entradas, selecionar os imigrantes desejáveis, submeter os residentes, regulamentar documentos, informar as mudanças de endereço, conseguir salvo-conduto durante a guerra (particular para os naturais dos países do Eixo).

    Com lei ou sem lei[*27], o governo perseguia e expulsava os que eram considerados “indesejáveis”, mas era mais conveniente expulsar legalmente. Esta mesma lei que deu legalidade às ações arbitrárias do Executivo também chegou a ser um elemento de proteção aos estrangeiros residentes, não no caso da portuguesa Maria Beatriz Duarte.

    Maria Izilda Santos de Matos
    Referências bibliográficas
    BONFÁ, Rogério Luis Giampietro. Expulsão e Residência: a luta pelo direito dos imigrantes na Primeira República. In: ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: Poder, Violência e Exclusão, 2008, São Paulo. Anais do XIX. São Paulo: ANPUH/SP; USP. São Paulo, 2008. CD-ROM.
    DUTRA, Eliana, Crime Político e Segurança Nacional. In: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris (Orgs.). Seminários nº 3: Imigração, repressão e segurança nacional. São Paulo: Arquivo Público do Estado; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.
    MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. p. 217.
    RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. São Paulo: Paz e terra, 1991.

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