quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Uma doceira marrana que fazia os deliciosos massapães de Torre de Moncorvo

António Júlio Andrade

Fernanda Guimarães
Naquele dia 21 de Agosto de 1647, fizeram-se em Torre de Moncorvo umas quantas prisões, a mando do tribunal da Inquisição de Coimbra. Entre os aprisionados contava-se um Francisco Brandão e sua mulher Maria Rodrigues. Enquanto se não organizava a marcha para Coimbra – isso implicava uma série de diligências – o Francisco foi metido na cadeia da vila e a Maria ficou guardada em casa de uma cristã-velha, Joana de Gouveia, de seu nome e pertencente à nobreza da vila.
Chegada a hora de abalar, a tralha (colchões, cobertores, panelas, pratos… - que eles tinham que levar cozinha e cama - foi carregada em um jumento que seguiu à frente, na caravana dos homens. A ela puseram-lhe um macho à porta
da casa onde estava presa e ajudaram-na a montar para o dorso do animal. Depois ataram-lhe as mãos e os pés, não tanto com receio de que ela fugisse, mas para engrandecer o espectáculo. Quem dirigia estas operações era o comissário local, ajudado pelo familiar do santo ofício Francisco de Gouveia Pinto.
Implorou que a levassem pela rua das Quatro Esquinas, para que os filhos a não vissem naquela triste e degradante situação, exposta à irrisão do público. De contrário, decidiu o comissário, segundo o alvitre do familiar, que iria mesmo pela Praça do Município onde ficava a sua casa, para que vissem bem vista e servir de exemplo, sobretudo para os filhos que choravam. Escarninho, o familiar voltou-se para ela e ordenou:


- Valha aos diabos, bravazona! – ao que ela respondeu:
- Não quer que chore pelos meus meninos? Pois vou presa por falsários e traidores.
Mais tarde ela explicaria que o Pinto disse aquilo por raiva e que estava raivoso por lhe não cometerem a ele a prisão, nem vir com ela nem com os mais presos, a ganhar dinheiro.
Certamente que ele não aceitava tal explicação e se alguém lhe perguntasse porque estava ali, sem ser chamado, a acompanhar a prisioneira pelas ruas da vila, responderia que era por zelo da fé cristã. Aliás, eram mais de 50 pessoas, beatos e beatas e garotos que, como ele, seguiam, como em procissão, proferindo ameaças e impropérios contra os hereges dos judeus.
Ao passar pelo Rossio, junto à igreja matriz, juntou-se outra prisioneira, Beatriz da Costa, igualmente montada e amarrada em uma cavalgadura conduzida pela rédea por um caminheiro contratado para o efeito. E Maria Rodrigues terá então desabafado para esta companheira:
- Negros companhas foram os nossos! – como quem diz: pouca sorte a nossa!
Ao chegar o cortejo ao cabo da vila, avistou-se a coluna dos homens que seguiam presos, à frente, na estrada do Pocinho, a transpor a Portela das Aveleiras. E Maria Rodrigues ter-se-á posto a gritar para o marido:
- Meu Brandão, pai dos meus filhos! – e a falar coisas que as testemunhas não reproduziram.
E então, o familiar disse ao homem que tinha a besta pelo cabresto, lha volvesse, não lhe desse o sol no rosto – uma forma assaz matreira de mandar parar a marcha e impedir que a prisioneira comunicasse com o marido. E ela, então, virou-se para o Pinto clamando em alta voz e por muitas vezes:
- Falsário, traidor, inimigo cruel da gente da nação! – e acrescentou ameaças e juras que eu lho havia de pagar, tratando-me muito mal e tudo em desprezo do meu ofício; e ouviram estas palavras mais de 50 pessoas – conforme testemunho de Francisco de Gouveia Pinto, em carta dirigida aos inquisidores de Coimbra, descrevendo a cena.
Sim: este era mais um crime a acrescentar no cadastro daquela mulher que foi presa por judaísmo. Insultar um familiar do Santo Ofício era falta de respeito para com o santo tribunal. E a gravidade do crime aumentava porque as ameaças e insultos ao familiar foram feitas à frente de mais de 50 pessoas.
Algumas dessas pessoas foram depois chamadas a depor no processo e, com mais ou menos colorido, todas confirmaram o essencial da cena. Uma delas disse que Maria Rodrigues chamou em altas vozes palavras afrontosas ao dito familiar, como: traidor, falsário, quanto me tens comido, a que o dito familiar respondeu se a levara presa lhe havia de pôr uma mordaça.
Deixemos a caravana seguir para Coimbra e voltemos à Praça do Município, em Torre de Moncorvo, à casa de Francisco Brandão e Maria Rodrigues, paredes-meias com a do ferrador Henrique Rodrigues. Aliás, as duas casas comunicavam por um buraco e Maria confessará mais tarde aos inquisidores que foi a mulher do ferrador que a catequizou. Vejam essa declaração:
- Disse que haverá 12 anos, em sua casa, por um buraco de sua casa, que estava junto de outra de Henrique Rodrigues, ferrador, chegou ao dito buraco Susana Mendes, mulher do mesmo e doutrinou-a e apartou-se.
Não curando saber a verdade desta confissão, é interessante notar este pormenor da construção das casas e imaginar como as mulheres conversavam sem sair da própria casa.
Tinha a casa dois pisos, sendo que o primeiro era destinado ao comércio. Tendeiro era a profissão de Francisco. Mas na sua tenda não se vendiam apenas tecidos e linhas. Sabemos, por exemplo, que em Torre de Moncorvo ele era o único vendedor de sabão autorizado. Como também vendia resmas de papel… Para aquela época, devia ser uma boa casa comercial a sua, pois que nos dias de feira, pela muita gente que acudia a comprar a sua casa, nem tempo tinha para comer.

Uma das acusações que lhe fizeram foi de em sua casa se juntarem várias famílias de cristãos-novos, certamente para rezarem e fazerem cerimónias judaicas. Ela responderá que não, que as pessoas iam lá e se juntavam porque dava jogo em sua casa. Por causa disso, aliás, é que vieram as inimizades com um tal Francisco Gonçalves, que também tinha casa de jogo e viu os lucros descerem com a abertura da sua.
Certamente que a sala do jogo era no piso de cima, pois essa actividade envolvia muita discrição e alguma clandestinidade, pois ninguém gostava de ser visto ou apanhado a jogar.
Subia-se para o andar de cima por uma escada interior, a partir da tenda. E durante a semana parece que raramente se via a dona da casa ficar em baixo por muito tempo. Passava os dias a fazer doces e o seu trato principal era o de doceira. Dirá ela que de contínuo assistia na sua tenda a fazer e a vender doces, sem dali sair.
De verdade, na culinária Moncorvense a doçaria sempre mereceu especial destaque e, para além das famosas amêndoas cobertas, merecem inscrever-se no seu dicionário doceiro os massapães que já a Maria Rodrigues fazia para vender, tal como hoje se fazem, com amêndoas pisadas, ovos, farinha e açúcar.
E se a doceira dizia que passava o tempo a fazer e vender doces, gente apareceu a dizer perante o comissário da Inquisição que durante a semana mal se vê na tenda mas aos sábados deixa o andar de cima e vem abaixo à tenda e fica sentada na escada sem fazer nada. Mas vejam todo o colorido da denúncia feita pelo distribuidor e contador Teotónio Barreto:
- Maria Rodrigues durante a semana não vem abaixo á tenda (…) e nos sábados vem assistir na tenda, mais consertada de corpo e rosto e mais alegre do que do costume. E ele testemunha vê muitas vezes, por a tenda estar na praça.
E se este homem via, por a tenda estar na praça, imagina-se como o familiar Francisco de Gouveia Pinto se poria a espiolhar cada gesto e cada fala daqueles judeus que ele havia de apanhar. Pelo seu depoimento, dá ideia de ser frequentador assíduo da tenda e conversar muito com o tendeiro e a mulher. Assim, disse que, várias vezes, aos sábados, vendo os dois sem trabalhar, lhe perguntava porque estavam ociosos e eles respondiam que estavam enfadados e não podiam aturar o trabalho de toda a semana. E disse que outras vezes os via, em dias de sábado, ter fechada a loja e eles estarem na praça.
Gouveia Pinto nomeou também os cristãos-novos que via entrar para casa do Brandão e lá ficarem com a porta fechada. E terá mesmo estranhado isso e perguntou-lhes mesmo porque se juntavam lá em casa. A isto terá ele respondido com outra pergunta: se em sua casa não recebia também os seus amigos? E este respondeu que conversava com os amigos à porta mas não dentro de casa.
Reparou também o Pinto que os tais ajuntamentos se faziam mais nas noites de sexta-feira. E então passou a andar mais de olho neles. Eis o resultado de uma dessas observações, conforme relatou ao comissário Pedro Saraiva de Vasconcelos, em 15 de Junho de 1646:
- Hoje, 15 do mês de Junho, entrando ele na tenda do dito Francisco Brandão e sua mulher Maria Rodrigues, ao tempo que o relógio deu uma hora depois do meio dia, sexta-feira, estava Maria Rodrigues fiando uma roca, e a tirou da cinta e se pôs a conversar com ele testemunha e com o dito seu marido, sem fazer coisa alguma.
Interessante também o processo de Maria Rodrigues, do ponto de vista das suas relações familiares e da dispersão territorial dos mesmos. Tinha um irmão casado em Lamego e outro em Coimbra. Um sobrinho era advogado no Porto e outro a residir em Lagos que era revedor, administrador e cobrador das terças do Reino. Sendo preso pela Inquisição de Évora, ao ditar o seu inventário disse que tinha 21 painéis, entre eles um quadro do rei de Portugal, D. João IV. E muito mais se poderia dizer sobre os dois processos que lhe foram instaurados – o que não caberia num artigo de jornal. Talvez que um dia voltemos a tratar do assunto.

António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
FONTE – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2062, de Maria Rodrigues.

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1 comentário:

  1. Sinto uma revolta tão grande que nem comento .Obrigado aos autores.
    A.G.

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