terça-feira, 27 de dezembro de 2016

(JOÃO BERNARDO SÁRREA DE BARROS),por António Pimenta de Castro*

 Lembrando O  SENHOR BARROS Dentista

                                                 
 DEDICATÓRIA

Quero dedicar este meu trabalho, à memória do meu saudoso amigo, João Bernardo Sárrea de Barros, mais conhecido por Sr. Barros dentista. Pelos muitos e memoráveis momentos de convívio, vividos em conjunto, juntamente com o meu querido e saudoso Tio Mário, junto à sua reconfortante lareira, em noites de longa invernia transmontana, em tardes de douta conversação, no seu consultório, quer ainda, em noites encantadas de luar, (como só em Mogadouro existem) perfumadas pelo aroma do meu cachimbo e pela sua agradável presença, sentados no pátio da sua casa, em amena e harmoniosa cavaqueira.
 Às suas filhas, Maria da Conceição Barros Afonso e Maria Júlia Guarda Ribeiro, pelo que me ajudaram na recolha de informação sobre a vida do seu saudoso pai.    

                                                      À LAIA DE INTRODUÇÃO

Com este pequeno opúsculo, quero iniciar a publicação de uma série de pequenos trabalhos, sobre algumas figuras de Mogadourenses ilustres, que eu conheci e a quem não foi, ainda, prestada a devida homenagem[1]. Essas pessoas, foram ilustres, cada um à sua maneira, uns a trabalhar, outros a escrever, eu sei lá, tanta coisa bonita e digna de memória que fizeram. Todas elas são pessoas, que tiveram a sua importância, no seu tempo, e a quem a sua terra natal, ou a que escolheram como sua, ainda não soube prestar a homenagem, que muito justamente merecem. Vou começar essa série de opúsculos, com o meu saudoso amigo João Bernardo Sárrea de Barros, mais conhecido como Sr. Barros dentista. Creio, que é justo este meu preito de homenagem ao homem que tratou dos dentes, a várias gerações de transmontanos, sobretudo Mogadourenses, e não só…. Não seria um primor de suavidade, na maneira como lidava com os seus pacientes, as suas mãos não seriam, possivelmente as mais delicadas, para o seu delicado ofício de dentista, mas todos lhe devemos reverência, não só por ser praticamente o único dentista que existia em Mogadouro e arredores mas, sobretudo pelas quantias irrisórias que levava aos seus pacientes, sendo muitas vezes paga a consulta, com ovos, lenha, galinhas ou qualquer outro género agrícola, porque o dinheiro naquele tempo não abundava. Por falta de dinheiro, nunca ninguém saiu do seu consultório sem ser atendido e vi eu muitas vezes, aos mais pobres, nem sequer dinheiro lhes levava. Foi uma figura, que marcou Mogadouro, penso que ninguém contesta esta minha afirmação, e isto basta para lhe prestar a minha sincera homenagem.        
Lembro-me, como se fosse hoje, da primeira vez que vim a Mogadouro. Foi no, já longínquo ano de 1980. Estava eu, no último ano do curso de História, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e vim conhecer a terra que viu nascer a minha futura mulher. Fui recebido principescamente pela sua família, que me mostrou todos os monumentos e lugares dignos de uma visita, em Mogadouro e outras terras vizinhas e, obviamente, apresentado às pessoas conhecidas e amigas. Foi assim que conheci o Sr. Barros, como era tratado por toda a gente da terra. (Curiosamente, o meu Tio Mário, a quem o ligava longos anos de uma amizade sincera e profunda, tratava-o, carinhosamente, por Barros Terra, creio que por causa de uma personagem de livro ou telenovela brasileira, chamado, precisamente, Barros Terra). Ainda me lembro como foi esse primeiro encontro. O meu Tio Mário depois de me ter apresentado a várias pessoas conhecidas, metendo o seu braço no meu, disse-me: agora vou apresentá-lo a outro minhoto que vive em Mogadouro, é o meu amigo Barros, que é dentista e um homem muito culto. Entramos pelas traseiras da sua casa, que era um palacete de traça brasileira, na rua da República[2], ironia do destino, uma vez que ele era profundamente monárquico e, logo no átrio de entrada, reparei num letreiro que me despertou grande admiração. O referido letreiro, consistia numa placa azul, com letras em branco, que dizia assim: João Bernardo Sárrea de Barros, dentista e por baixo, com letras muito maiores e sublinhado, NÃO É DOUTOR. Seria, mais ou menos assim:
João Bernardo Sárrea de Barros – Dentista

(NÃO É DOUTOR)
                      Isto diz muito da personalidade do Sr. Barros. Do átrio/sala de espera, passamos ao seu consultório que, todo ele era bem genuíno e completamente démodé, quase artesanal: a cadeira de dentista, era uma cadeira de barbeiro, da qual retirou o braço direito, para melhor se poder debruçar sobre o paciente, uma broca muito primitiva, uma lamparina para desinfectar o material de dentista, um pequeno lavatório, frascos e outros recipientes contendo fármacos próprios de um odontologista. Como ele não se encontrava no consultório, o meu Tio Mário irrompeu por um corredor, com o boné na mão, aos gritos de «-Ó Ernestina! Ernestina! Onde está o Sr. Barros?», «-na cozinha!», respondeu ela. E lá entramos nós. Era um compartimento gigantesco, dominado, ao fundo, por uma enorme lareira, desde o Outono sempre acesa, com um fogo muito intenso, sempre com a melhor lenha de Mogadouro, como o Sr. Barros fazia questão de dizer. Neste compartimento, existia uma grande mesa, onde ele comia todos os dias e onde, arrumados num topo dela, se encontrava empilhado, um grande montão de papelada variada, jornais, revistas e livros. Entramos e após ter recebido um beijo de boas-vindas da Dona Ernestina, na altura a empregada/governanta da casa e mais tarde, futura esposa, foi-me apresentado o Sr. Barros, personagem já mítica para mim, uma vez que eu já o conhecia, pelas conversas que ouvira sobre ele, em casa da minha futura mulher. Era um homenzarrão, com a coluna um pouco curva (fruto da posição com que exercia a sua profissão), já bem entrado na idade, calvo, com umas mãos enormes, pormenor que saltava logo à vista, sobretudo para a sua profissão, mas profundamente simpático e um olhar que denotava inteligência. Estava sentado num banquinho, ao lume, com as pernas escarranchadas, para aproveitar melhor o calor que vinha da lareira e sobre o joelho esquerdo, a secar ao lume, um lenço de assoar. Tinha nas mãos uma substância que, depois percebi ser a sobra da matéria para fazer as gengivas das placas dentárias, cor-de-rosa, com a qual fazia pequenos Cristos, que metia, com grande paciência, em garrafas de vidro branco. Logo se desenvolveu entre nós, uma mútua empatia, uma vez que nos ligavam, muitas coisas comuns, como, por exemplo: ambos nascemos em terras minhotas (ele, em Vila Praia de Âncora eu em Arcos de Valdevez, as duas terras pertencentes ao mesmo distrito de Viana do Castelo); éramos monárquicos (embora eu seja profundamente democrata e constitucional liberal e ele, diria eu que era ultra Miguelista e ultra católico tradicionalista), ambos gostávamos de Trás-os-Montes e ambos tínhamos a paixão dos livros. Logo no primeiro dia em que nos conhecemos, levou-me ao primeiro andar de sua enorme casa e, na sala de jantar, que só usava em ocasiões mais solenes, abriu-me uma estante cheia de livros, para eu consultar e poder levar para casa, se assim o desejasse. Foi-se então desenvolvendo uma grande amizade entre ambos. Todos as noites, ou quase todas, ia a sua casa para uma amena cavaqueira, uma vez que o Sr. Barros era um grande conversador e eu um atento ouvinte. Organizamos, juntamente com o Sr. Ramalho, alentejano de Moura, que trabalhava na biblioteca itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian em Mogadouro, o Sr. Francisco Xavier Felgueiras, o Sr. Aguiar e esposa, da Casa Grande de Tó, e muita mais gente de Mogadouro e redondezas, uma vinda do Duque de Bragança, Senhor Dom Duarte Pio a Mogadouro, que culminou num excelente jantar, que foi um êxito retumbante[3]. O restaurante, “A Lareira”, encheu por completo, ao ponto de ter de se fechar o café. Para além disso, todos os anos o Sr. Barros, o Sr. Peres, o Sr. Francisco Felgueiras, o Professor Ilídio Rito e eu próprio, entre outros, organizava-mos, sempre um jantar dos Conjurados, aquando do Primeiro de Dezembro. Apesar de eu defender uma monarquia à espanhola, ou seja constitucional, liberal, democrática e profundamente moderna e o Sr. Barros ser um ultra tradicionalista, miguelista e um católico exacerbado, sempre nos demos bem. O Sr. Barros lia muito, embora, na sua maioria fossem livros ultra conservadores, como por exemplo, os livros do J. Ploncard D’Assac e mantinha uma conversa agradável, embora, por vezes entrássemos em fricção, por causa da diferença de opiniões políticas e de mentalidade. Como já referi, foi uma personalidade que me marcou, e marcou Mogadouro do seu tempo. Ele amou profundamente esta terra, a quem queria como sua. Posto isto, irei ter o prazer de escrever umas breves notas biográficas, do meu ilustre amigo, distinto cidadão e famoso dentista.    

António Pimenta de Castro

 BREVES NOTAS BIOGRÁFICAS

Ainda hoje, quase toda a gente pensa que o Sr. Barros era transmontano, na medida em que aqui viveu muitos anos e ainda pelo amor que tinha a esta terra e às suas gentes. Na realidade, o Sr. Barros era minhoto de nascimento, embora transmontano de coração e de adopção.
João Bernardo Sárrea de Barros nasceu em Vila Praia de Âncora, concelho de Caminha, distrito de Viana do Castelo, no dia 12 de Agosto de 1902. Era filho de António Joaquim de Barros e de Maria da Soledade Sárria. Num documento da capitania do porto de Viana do Castelo, Delegação da Marinha – Âncora, datado de 6 de Abril de 1922, vem descritos alguns sinais característicos do jovem João Bernardo Sárrea de Barros, teria então vinte anos de idade que, pelo seu interesse, transcrevemos na íntegra: Altura, – 1,72; Boca, regular; Barba, preta; cabelos, castanhos; cor, natural; nariz regular; olhos, castanhos; sinais particulares, não tem. Documentos apresentados para a sua inscrição – Certidão de idade e consentimento materno. Habilitações literárias, 2º ano do curso elementar de pilotagem”. “Documento da Capitania do porto de Delegação Marítima de Âncora, Distrito marítimo do Norte, Livro n.º 2, nº 334, Folhas n.º 135, assinado pelo delegado marítimo A. Rodrigues da Silva.”

Como acabamos de ler, o Sr. Barros frequentou a Escola de Pilotos em Caminha, onde obteve a carta de piloto em 6 de Abril de 1922. Durante cerca de três anos, exerceu a profissão de piloto na frota bacalhoeira de Viana do Castelo, que demandava a Terra Nova. A vida de marinheiro, embarcado num bacalhoeiro, era uma vida extremamente dura, monótona e perigosa. Eram muitos meses passados no isolamento no meio da gélida neblina da Terra Nova. Apesar de ter nascido numa terra á beira-mar, não era vida para ele. Assim, após três anos desta fatigante e deprimente actividade e de assistir a vários acidentes e, inclusivamente sofrer um violento naufrágio, decidiu mudar de vida. Segundo fonte familiar, a sua mãe insistiu com ele para abandonar tão perigosa profissão.   

            “Acabou por desistir de profissão tão arriscada e foi então que se virou para a arte dentária, tendo como orientador o competente Cirurgião Dentista António Ramos (em Vila Praia de Âncora). Por esse tempo e na sequência da revolução republicana de 1910 estava (ainda) fechada a Escola de Odontologia de Lisboa, então a única escola de formação de dentistas existente em Portugal.

            Enquanto aguardava a reabertura da Escola, foi aconselhado a vir para Trás-os-Montes, onde não havia ninguém que tratasse os dentes. Foi assim que se fixou em Moncorvo, em 1928 e foi o Dr. Ramiro Guerra, então administrador do concelho e médico do partido que lhe mandou passar alvará para ali exercer a profissão…E foi com brio, empenho, abnegação e sentido pedagógico que trabalhou durante 65 anos.”[4]   

            Enquanto aguardava a reabertura da Escola casou e, obviamente teve necessidade de começar a trabalhar. Em finais de 1928, radicou-se em Trás-os-Montes, como dentista e a terra escolhida foi Torre de Moncorvo[5]. Tinha então cerca de 27 anos. Não só foi bem recebido, como profissionalmente, teve êxito imediato. Como me disse a sua filha Maria Júlia: “Esse êxito deveu-se, em 1º lugar, ao seu trabalho: nele punha todo o seu saber, arte, empenhamento e perfeição técnica.

      Em 2º lugar destacava-se o seu carácter: era um homem estruturalmente honesto e procurava fazer sempre o melhor para os seus pacientes. São famosas as muitíssimas histórias que dele contam as pessoas pobres de Moncorvo e de terras em redor, às quais não levava dinheiro”

            Em 3º lugar era um homem de cultura vastíssima: no âmbito profissional possuía um sólido conhecimento científico e técnico, o que granjeou a confiança e a amizade de grandes médicos como o Dr. Ramiro Guerra, o Dr. Rodrigues, a Dr.ª Lucília e outros, que nunca hesitaram em recorrer aos seus serviços como dentista. Era um profundo conhecedor de História, de Geografia, Química, Matemática, Astronomia…Era um homem que lia muito. Em suma: era o típico autodidacta. E era, sobretudo, um conversador extraordinário. Só quem teve o prazer de o escutar, sabe quão interessantes e enriquecedoras eram as suas conversas sobre temas como: Literatura, Ciência, Política, Religião.

Era católico e monárquico convicto.

            Porém, homem algum é composto apenas de qualidades. E ele, sendo um homem de convicções muito firmes, era, por vezes, inflexível e até pouco tolerante para os que dele discordavam. Teve uma filha fora do casamento. Mas amou as duas filhas[6] de igual modo, porque soube ser um Pai excelente.[7]

            Em Moncorvo, o Sr. Barros, deu-se sempre com a melhor sociedade da terra. Entre outras, era um habitual frequentador das deambulações, quase rituais, que as principais personalidades de Moncorvo faziam na placa central da velha Praça Francisco Meireles, sobretudo depois do almoço. Era já uma tradição, bem enraizada em Torre de Moncorvo, os maiores comerciantes e as individualidades mais em destaque na terra, depois de almoço, “fazerem tempo” até abrirem as repartições e o comércio, passearem, com regras bem definidas, na referida praça, cavaqueando, ou como se costuma dizer “dando dois dedos de conversa”. Do tempo que o Sr. Barros passou em Torre de Moncorvo, como personalidade carismática que era, contam-se inúmeras histórias, umas verdadeiras, outras um pouco romanceadas. O Dr. Armando Sanches de Morais Pimentel, dos Estevais de Mogadouro, grande amigo do Sr. Barros, que com ele conviveu longos anos, contou-me há bem pouco tempo um caso, que ele presenciou. O Sr. Barros comprava a fazenda para os seus fatos (no tempo em que ainda havia alfaiates…), no comércio do Sr. Mateus. Quando o Sr. Mateus começava a colocar as peças de fazenda em cima do balcão, o Sr. Barros dizia-lhe: «Ó Mateus, não me compliques a vida! Põe-me só duas peças, para eu escolher!». Depois do fato feito, o Sr. Barros dizia que gostava sempre de espojar-se em cima da cama, pois, como ele costumava dizer: «não gostava de vestir um fato novo muito direitinho, ou seja, não gostava de vestir um fato, sem este antes ser amarrotado, ou seja, com vincos». Isto diz bem do sentido de humor, da naturalidade e da personalidade do Sr. Barros…                

            Depois, em 1971, mudou-se para Mogadouro[8], onde trabalhou durante largos anos e onde viria a falecer e a ser sepultado no cemitério da vila. Como escreveu a sua filha Maria Júlia: “Não terá sido, talvez, a sua decisão mais acertada, pois ficou longe do círculo de amigos de mais de quarenta anos que tinha em (Torre de) Moncorvo. Os mais chegados continuaram a visitá-lo, mas o tempo não perdoa e essas visitas foram rareando: uns porque deixaram este mundo, como o seu mais íntimo amigo, o Dr. Ramiro Salgado; outros, como o Dr. Leite, o Dr. Amável, a D. Cármen, porque a idade e a doença os foram incapacitando.

Viúvo desde 1992, contraiu matrimónio, pela segunda vez em 1993 em Mogadouro[9]. (com o D. Ernestina Augusta Pereira, que viria a falecer em 06/04/2005). No entanto, em Mogadouro, logo fez muitos amigos e sobretudo à noite, a sua casa enchia-se de visitas, que o iam ajudar a passar o serão. O Sr. Barros faleceu, em Mogadouro[10] a 18 de Março de 1994. Está sepultado no cemitério desta vila transmontana. Não obstante o que escreveu a sua filha, como já referi, em Mogadouro, o Sr. Barros tinha muitos e dedicados amigos, das mais variadas classes sociais, sou testemunha pessoal disso. O Sr. Barros era muito considerado na terra de Trindade Coelho e nela tinha muitos e dedicados amigos, que ainda hoje o recordam com grande saudade.        

  Durante toda a vida de dentista, mais de sessenta e cinco anos, tratou os dentes a várias gerações de transmontanos, de Moncorvo, Alfândega da Fé, Vila Nova de Foz Côa, Freixo de Espada à Cinta, Mogadouro, Vimioso, Sendim, Duas Igrejas, Miranda do Douro e de muitas outras povoações recônditas, deste Nordeste Transmontano, muitas vezes sem levar um tostão sequer aos seus pacientes. Era assim o Sr. Barros…: “O seu profissionalismo e ética eram sobejamente conhecidos. Os doentes estavam sempre em primeiro lugar, mesmo que isso implicasse sacrifícios de ordem pessoal ou familiar. Trabalhou sem horário e sem férias, aos sábados e domingos. Aliás, nessa altura todos podiam ir ao dentista, porque a falta de dinheiro não impedia o tratamento adequado. (…) mesmo as crianças iam tratar os dentes, sem acompanhante e sem choradeiras. O Sr. Barros tinha sempre uma história para lhes contar.”[11]

Dele contavam-se, e ainda se contam, inúmeras histórias, umas verdadeiras, outras inventadas, como sempre acontece com personalidades fortes e carismáticas. A sua filha Maria Júlia escreveu uma delas, que eu ouvi, senão esta, outra semelhante, a propósito do Sr. Barros: “Um dia vinha a tia Ingelca mais contente e ligeira que uma cotovia, quando uma vizinha lhe perguntou a razão de tal alegria: “se te parece!” – respondeu a tia Ingelca – “Venho agora mesmo de arrancar um dente”. “E estás tão contente por arrancares um dente?” “Ai não, que não estou! O Sr. Barros não aceitou os 100 mil réis e disse-me que fosse comprar pão para os meus filhos!”[12] Esta história define bem o carácter deste Homem, com um H grande. De facto, apesar de ter trabalhado bastante, o Sr. Barros não enriqueceu…Eram outros os tempos e outros os homens…Nunca lhe conheci, e penso que nunca teve em toda a sua vida, um automóvel em 1ª mão. Ainda me estou a lembrar do seu “velho” Peugeot, se não me engano, do modelo 404, em que andei muitas vezes, com o Sr. Barros ao volante, em viagens, que eram verdadeiramente uma aventura…., soube através de amigos meus, que em Torre de Moncorvo tinha um Citroën “arrastadeira”.

Teve defeitos? Claro que os teve, quem os não tem? Como se costuma dizer: “errar é próprio do homem”. Mas as suas qualidades superavam, em muito, os seus defeitos…

O Sr. Barros era um homem muito culto, sendo, no entanto um autodidacta. Interessava-se pelas coisas mais variadas e inesperadas, desde a fotografia, à encadernação de livros, dos finos trabalhos de ouro à estatuária em gesso, da mecânica à arte de navegar, do jogo das damas ao xadrez, a fazer Cristos, que depois metia em garrafas brancas, até na vulgar “sueca” era imbatível. Era exímio, na arte de encadernar livros, quer encadernando os seus livros novos, quer recuperando velhos alfarrábios, que lhe iam parar à mão. Era bom intelectualmente e nas artes manuais.

Outra qualidade do Sr. Barros, era a sua invulgar memória, tinha, como se costuma dizer, “uma memória de elefante”. Lembrava-se de tudo, com pormenores incríveis. E ele viveu até muito tarde…imagine-se o que ele sabia…    

         Mas o seu passatempo preferido era, sem dúvida, a leitura. Lia muito, como disse a sua filha Maria Júlia: “Ele era um leitor ávido, atento e absorvente. Grande conversador (e eu que o diga….), a literatura, a ciência, a filosofia, a arte de marear – eram temas em que valia a pena escutá-lo. Quem o ouvisse ficava sempre um pouco mais rico. A sua agudeza de espírito levava-o a observar e tomar notas. Buscava a explicação para todos os factos e fenómenos. O seu pensamento era lúcido, racional e científico.”[13]

            Escreveu inúmeros artigos, em revistas e jornais, alguns sobre Odontologia, a maior parte sobre política ou outros assuntos do seu interesse. Gostava muito de escrever e, nesse sentido, publicou um pequeno opúsculo intitulado “Porquê?” e um livro de maior fôlego, intitulada “Domínio da Cárie e da Piorreia”, que eu li e reli, tantas vezes, quando o Sr. Barros o andava a escrever. Facto curioso, eu, já farto de ler e reler os vários capítulos que ele me ia dando para ler, ia, por vezes, “fazendo vista grossa” e apenas fingia que os estava a ler. O Sr. Barros, apercebendo-se disso, fazia como se faz aos miúdos, dava-me certo tempo para ler e, depois, fazia-me perguntas sobre o que eu tinha lido….

No prefácio ao seu livro “Domínio da Cárie e da Piorreia”, escreveu o Professor Doutor Oliveira Torres: “O Senhor Sárrea Barros é um homem que leva quase 60 anos de trabalho dedicados à Odontologia. Viu muito, laborou muito e meditou. Podia apenas, como tantos, resolver os problemas e deixar para os outros a tentativa da sua compreensão e explicação. Porém, o seu entusiasmo e o seu intelecto são superiores ao simplesmente ver passar os dias e buscou então explicações para o que observava (…) É, sem dúvida, uma personalidade culta, hábil e inteligente.”[14]      

            Dentro do âmbito profissional, o seu mérito foi reconhecido, foi distinguido, entre outros, com os seguintes prémios: No ano de 1984, foi distinguido, por unanimidade, com o colar de Santa Apolónia, padroeira dos dentistas, «distinção atribuída ao melhor dentista do ano em curso». Também o Sindicato Nacional dos Odontologistas o distinguiu com a Medalha de Mérito no ano de 1986.

            Foi também um grande pedagogo. Como escreveu a sua filha, Maria Júlia: “Era assim o Sr. Barros. Só estava contente quando ajudava alguém a promover-se. Procurava falar sempre de modo que as pessoas analfabetas daquelas aldeias lá no ar de Judas o entendessem. Uma das comparações que mais frequentemente utilizava era a do buraquinho pequenino numa meia e que, se não fosse cosido a tempo e horas, se transformaria num buraco enorme até que a meia já não tinha conserto: -“É assim que acontece com os dentes. Tal e qual”.[15]   

            É assim que recordo o meu “velho” amigo, João Bernardo Sárrea de Barros: inteligente, bom conversador, altruísta, bondoso, culto e Amigo. Não podia deixar de escrever este pequeno texto sobre ele. O que está escrito fica! O que não está, cai no esquecimento! E o Sr. Barros não se pode esquecer.

O meu amigo Sr. Barros faleceu no dia vinte e oito de Março de mil novecentos e noventa e quatro, com noventa e um anos de idade e está sepultado no cemitério de Mogadouro, sepultura nº 386. No seu assento de óbito, arquivado no cartório paroquial de Mogadouro, está registado o seguinte: “João Bernardo Sarria de Barros de 91 anos de idade, no estado de casado com Ernestina Sarria[16], filho de António Joaquim de Barros e de Maria da Soledade Sarria, faleceu no dia vinte e oito de Março de mil novecentos e noventa e quatro, na freguesia de Mogadouro, concelho de Mogadouro, e foi sepultado catolicamente na paróquia de Mogadouro, não tendo recebido os sacramentos.

            O Pároco Francisco José Silvestre”.[17]

            O Sr. Barros, em 1994, sofreu uma pneumonia e esteve internado na Clínica do Bonfim, na cidade do Porto. Como tinha muitas saudades de Mogadouro e sobretudo do seu ambiente doméstico e das suas “coisas”, logo que lhe foi possível, regressou a esta vila transmontana, onde viria a falecer em sua casa[18], pelas 12 horas (doze horas e zero minutos)[19], do dia 28 de Março de 1994, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC), tendo sido sepultado no cemitério[20] do seu querido Mogadouro.

Como disse a sua filha Maria Júlia: “Para terminar, há que dizer que, após uma vida extraordinariamente cheia, teve a alegria de, nos últimos anos, ver reunidos à sua volta as filhas e os netos e sentir-se envolvido pelo amor e carinho de todos”.[21]

Estou em acreditar que, foi para ele uma enorme alegria, ver toda a sua família reunida, ele que tanto a prezava. Foi um homem Bom. Quem o conheceu, ficou mais rico. Para finalizar, como ele gostava de dizer, «Que Deus o tenha na Sua Santa Guarda».[22]            



                                                            António Pimenta de Castro

O AUTOR

                  António Manuel Ramos Pimenta de Castro nasceu na vila de Arcos de Valdevez, freguesia de Salvador, da referida vila minhota, em 20 de Outubro de 1953. Veio viver para Mogadouro em 1982, onde se casou e tem dois filhos. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professor de História, há vinte e muitos anos, no actual Agrupamento Vertical de Escolas de Torre de Moncorvo. Conviveu, quase todos os dias e foi amigo, durante muitos anos, do Sr. Barros dentista, ou seja, de João Bernardo Sárrea de Barros.       
 OUTROS TRABALHOS PUBLICADOS PELO AUTOR

 Os Judeus na Obra de Trindade Coelho, opúsculo com a comunicação feita no II Congresso da Associação Judaica Memória-Zicaron Abotenu; Vila Nova de Gaia, Novembro de 1997; “Os Judeus na Obra de Trindade Coelho”, Livro com a Edição da Câmara Municipal de Mogadouro, Mogadouro, 1998; “Um Olhar Etnográfico – Festas e Romarias” no Livro Entre Duas Margens – Douro Internacional, João Azevedo Editor, Mirandela, 1998; “A Face Limiana de Campos Monteiro”, Edição do Autor, com o patrocínio da Escola Secundária Dr. Ramiro salgado, Torre de Moncorvo, 2001; “Notas Históricas e Gastronómicas sobre a Feira dos Gorazes (Mogadouro) Edição do Autor, 1ª Edição 2001, 2ª Edição 2003; “Os Palheiros de Fornos (Pequeno contributo para o estudo da arquitectura popular transmontana)”, Edição da Junta de Freguesia de Fornos (Freixo de Espada à Cinta), Fornos, 2001; “Campos Monteiro e a Ribeira-Lima”, Edição do Centro de Estudos Regionais CER, Viana do Castelo, 2002; “O Pensamento Maçónico em Trindade Coelho”, No livro de Actas do 1º Congresso sobre a Maçonaria Regular em Portugal, Editado pela Grande Loja Regular de Portugal/Grande Loja Legal de Portugal, Lisboa, Museu da Água, 19 de Outubro de 2002; “Mogadouro – Notas Monográficas”, No Dicionário dos Mais Ilustres Transmontanos e Alto Durienses, Volume III; páginas 354 a 387, Distrito de Bragança (concelho de Mogadouro), Coordenação do Dr. Barroso da Fonte, Editora Cidade Berço, Guimarães, 2003; “As Festas de Nossa Senhora do Caminho”, nas revistas da Comissão de Festas da Nossa Senhora do Caminho, dos anos de 2003, 2004; “Subsídios Para Uma Biografia de Joaquim Manuel Rebelo – (Sr. Padre Rebelo)”, Edição da Escola Secundária Dr. Ramiro Salgado e com o Apoio da Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, Torre de Moncorvo, 2006; “Dois Arcuenses no livro In Illo Tempore de Trindade Coelho”, Mogadouro, 2007; “ Mogadouro e a Festa de Nossa Senhora do Caminho”, revista da Comissão de Festas de Nossa Senhora do Caminho, Mogadouro, 2007; “Guerra Junqueiro – Os Tempos de Viana do Castelo”, na revista Fryxeno, Freixo de Espada à Cinta, n.º 8, Agosto de 2007.
*Historiador, docente no Agrupamento de Escolas de Torre de Moncorvo, membro da “Academia de Letras de Trás-os-Montes” e do “Clube dos Poetas Vivos das Terras da Nóbrega e Valdevez” colaborador da revista Epicur
[1] - Penso, que a Comissão de toponímia de Mogadouro deveria atribuir o seu nome a uma rua da vila, onde viveu tantos anos e a quem tanto amou.
[2] - A fachada principal da sua casa, que era um palacete com traços de arquitectura de influência brasileira, situava-se na Rua de Santa Marinha. O acesso directo ao seu consultório fazia-se pela rua que dava para as traseiras da sua casa, chamada Rua da República.
[3] - Este jantar, deve ter sido realizado nos primeiros anos dos anos oitenta, como foi recordado em conversa, entre mim próprio e o Sr. Dr. António Abílio Costa, então Presidente da Câmara Municipal de Mogadouro e, também participante neste memorável convívio. Nesse referido jantar no restaurante “A Lareira”, eu e o Sr. Barros, fomos agraciados com uma medalha de mérito, que ainda conservo, que nos foi atribuída, pela Causa Monárquica. A referida medalha de mérito, que nos foi colocada pelo Senhor Dom Duarte de Bragança, foi transportada de Lisboa pelo Sr. Dom Marcus de Noronha. Neste jantar, participaram e ajudaram, também, muitas senhoras de Mogadouro. Como já referi, foi um grande êxito, que deu brado em Trás-os-Montes, e não só...     
[4] - Maria Júlia Guarda Ribeiro, no jornal Terra Quente, página 11, de 01 de Agosto de 2002.
[5] - O seu consultório e Moncorvo, segundo me informaram vários Moncorvenses, que foram inclusivamente seus pacientes, situava-se na rua Visconde de Vila Maior, também conhecida por rua de Santo António, antiga rua do cano.
[6] - O Sr. Barros tinha duas filhas, uma chamada Maria da Conceição Barros Afonso (Afonso, por parte de marido e que vive na cidade do Porto) e a outra Maria Júlia Guerra Ribeiro (que vive em Leiria).
[7] - Maria Júlia Guerra Ribeiro e Maria da Conceição Barros Afonso, em uma carta que me escreveram sobre uma breves notas biográficas do seu pai.
[8] - A sua última morada em Mogadouro, que era sua propriedade, em que viveu largos anos e que eu visitei inúmeras vezes, situava-se na rua de Santa Marinha.
[9] - Dados que me forneceram as suas filhas.
[10] - Na sua casa, situada na rua de Santa Marinha.
[11] - Maria Júlia Guarda Ribeiro, no jornal Terra Quente, página 11, de 01 de Agosto de 2002.
[12] - Maria Júlia Guarda Ribeiro, no jornal Terra Quente, página 11, de 01 de Agosto de 2002.
[13] - Maria Júlia Guarda Ribeiro, no jornal Terra Quente, página 11, de 01 de Agosto de 2002.
[14] - Prof. Doutor Oliveira Torres, no prefácio do livro “Domínio da Cárie e da Piorreia”.
[15] -Maria Júlia Guarda Ribeiro, no jornal Terra Quente, página 11, de 01 de Agosto de 2002. 

[16] - O Sr. Barros, que tinha ficado viúvo desde 1992, nos últimos anos da sua vida, mais concretamente em 1993, casou com a D. Ernestina Augusta Pereira, que viria a falecer, no dia 06/04/2005.  
[17] - Assento número 6. Este documento encontra-se arquivado no meu arquivo pessoal.
[18]  - A propósito do nome da rua onde morava o Sr. Barros, chamada Santa Marinha, ela deveria chamar-se Marina e não Marinha. Senão, vejamos o que nos diz o grande Abade de Baçal, na sua obra Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, volume VII, Os Notáveis, página 292, Edição do Museu do Abade de Baçal, Bragança, 1986:” Marina (Santa) – O autor do Anno Histórico dá-lhe o nome de Mariana, apesar de que o primeiro parece mais usado. A tradição, com todos os visos de certeza, dá-a como natural do Mogadouro, distrito de Bragança. Gil Gonçalves de Ávila, na primeira impressão do seu Theatro de Salamanca, página 261, aponta-a como portuguesa, circunstância que omitiu na segunda e terceira impressões, não se atrevendo, contudo, a dá-la como natural de Espanha. Também não consta ao certo o tempo em que viveu, apesar de que o Mappa de Portugal diz haver-se ela retirado aos desertos de Salamanca pelos anos de 1450, cuja asserção julgamos infundada, a não ser as graças e indulgências que o papa Calixto III concedeu aos devotos que favorecessem as obras da sua primeira ermida, e como este pontífice governou desde 1453 a 1458, talvez parta daqui aquela indicação. Se assim é, não merece confiança. O corpo de Santa Marina guarda-se com grande veneração, em sepulcro de mármore, na igreja do convento que tem o seu nome, da ordem franciscana, situado meia légua ao nascente da povoação portuguesa de Lagoaça, distrito de Bragança, mas já em território espanhol do bispado de Salamanca. Sendo jovem ainda, retirou-se para este local, onde perseverou até à morte numa gruta em vida solitária e contemplativa, qual anacoreta.
                Após o seu trânsito, os habitantes daqueles contornos, tanta era a veneração que tinham pelas suas excelsas virtudes, converteram a desabrida gruta em templo, para favorecer a fábrica do qual o papa concedeu as graças já apontadas, e tanto foi o entusiasmo, que em seu louvor se levantou o convento a que foi dado o seu nome.
                A cabeça da Santa, encastoada em prata, guarda-se com grande veneração na sua igreja e é dada a beijar ao povo no dia da Ascensão e a sua festa é celebrada, com grande solenidade, a 4 de Maio.
                O epitáfio do seu sepulcro, escrito numa tábua que pendurada no mesmo, diz:
HIC JACET CORPUS HUMILLIMAE, AT-
QUE DEVOTISSIMAE SERVAE DEI B.
MARINAE. QUE HOC DESERTUM, UT
CHRISTO DOMINO FELICIVS, TOTOQUE
PECTORE VACARET, A SUA JUVENTA
PETIIT, QUAEQUE FELICISSIME, ATQUE
CATHOLICE EXTREMUM IN LOCO CLAU-
SIT DIEM. AT CUJUS TANDEM HO-
NOREM SACRA HAEC AEDEAEDIFICATA
FUIT” (1)
(1) – Agiologio Lusitano, referente ao dia 4 de Maio; João Baptista de Castro, Mappa de Portugal, tomo II; Santos portuguezes, página 153, e Anno histórico, Vol II, pág. 19. 

[19] - É exactamente esta hora, ou seja, doze horas e zero minutos, que está na sua certidão de óbito do Registo Civil de Mogadouro. 
[20] - Sepultura nº 386, situada, quem entra pelo portão principal, do lado esquerdo, ao cimo do referido cemitério, antes de chegar à ampliação, feita recentemente.
[21] - Maria Júlia Barros Guarda Ribeiro e Maria da Conceição Barros Afonso, em uma carta que me escreveram, no dia 9 de Janeiro de 2007, com uma breve biografia de seu pai.  
[22] - “Que Deus o tenha Na Sua Santa Guarda”, era, e ainda é, uma saudação usada pelos monárquicos mais tradicionalistas.  

2 comentários:

  1. Mais um excelente texto do professor.Gostava de ter conhecido este senhor Barros.

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  2. Fazem bem em publicar textos que andam perdidos nos fundos das gavetas ou das bibliotecas.Este é duas vezes bom,pelo texto e pelo biografado.
    M.C.

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