domingo, 26 de janeiro de 2014

Torre de Moncorvo ao longe, por Tiago Patrício








Para falar de Torre de Moncorvo é preciso recuar até Carviçais e até à altura em que a Vila ficava mais longe do que os 16Km pela Estrada Nacional 220 e onde só ia na feira de ano a 10 de Maio comprar as primeira cerejas ou para seguir viagem mais para Sul.
Até aos meus 12 anos, Moncorvo era talvez mais distante do que outros lugares como Ílhavo, Porto, Caparica, Algarve. Em Carviçais havia tudo o que era preciso para se viver. Comboios, igrejas, comércios, restaurantes, correios, escola primária, Telescola e o Externato N. Sra de Fátima até ao 9º ano. Mas com 12 anos, achava que estava na altura de dar o salto e coragem de mudar nunca me faltou, talvez só a de permanecer e de me adaptar ao que existe.
Procurámos vários colégios, o dos Carvalhos, o da Formiga, o de Albergaria, o Internato Marista de Carcavelos, mas aos poucos a Escola Secundária de Torre de Moncorvo acabou por tornar-se numa escolha natural, mais por proximidade do que por opção.
Tirei as fotografias da matrícula no estúdio Peixe, vestia uma camisa azul esverdeada com o último botão do colarinho bem apertado. No fundo ainda suspirava por uma farda de colégio, só não encontrei o sítio certo ou a cor ideal para o uniforme. Mesmo assim Moncorvo foi um lugar de fuga, um fenómeno que se tem repetido noutros lugares, onde os graus de liberdade são oferecidos pela diferença de escala, pelo facto de quase ninguém nos conhecer, que é meio caminho andado para voltarmos a ter uma segunda vida. Moncorvo foi esse lugar, um pouco libertário demais no início, para alguém que vinha de uma aldeia, habituado às missas e a rezar o terço no mês de Maria.
A primeira vez que entrei no Liceu, ainda não se chamava Escola Secundária Dr. Ramiro Salgado, devia ser numa manhã de Setembro, corria o ano mágico de 1991. Vestia calças azuis, camisa branca e sapato fino. O Paulo Jorge de Felgueiras, de cabelo castanho claro e caracóis, perguntou-me – Também és caloiro?



 Já naquela altura trazia o meu cabelo preto a cair-me para os olhos e sabia que no Liceu cortavam o cabelo aos novos alunos. Demorei dois dias a acertar o cabelo, era a duração da praxe. Pouco a pouco conheci os colegas da turma, eram quase 35, eu era o nº 28 do 7º D. Havia 5 letras só para o 7º ano, A, B e C para os meninos da Vila e o D e o E para os das aldeias, na minha turma a maioria era do Felgar, depois da Lousa, da Horta, das Cabanas, da Foz, de Maçores, de Urros, do Peredo, de Felgueiras e do Carvalhal. O Tiago Alagoa, o meu melhor amigo, o Tó Gomes Pinto, o Bruno Almeida, o Rui e o Sandro, o meu único colega de Carviçais. Na primeira semana de aulas a Manuela Coelho e a Sónia baptizaram-me de “Dr. Ideias”. Não era apenas pela roupa engomada, nem pelo penteado, era também pelos os óculos e pela mala castanha de executivo em miniatura.
Depois do Natal ouvi falar do melhor aluno de matemática do 7º C. Tinha de descobrir qual era a táctica dele para o poder ultrapassar – Chamas-te Pedro Costa? E foi assim o começo de uma rivalidade que durou alguns anos, pela matemática e pela mesma rapariga. Depois transformou-se em amizade, um sentimento bastante mais pacífico, mas que pode durar menos tempo se não soubermos cuidar dele.
Um dia, o Pedro mostrou-me um poema que tinha escrito sobre as Leis de Newton. A partir desse dia também comecei a escrever poesia, acho que os meus amigos fizeram mais por mim do que aquilo que possam imaginar.
Aquele era o tempo em que a vida se confundia completamente com as aulas e os testes e os trabalhos de grupo. Passeava pela Vila durante o intervalo para o almoço, ia jogar Paratrooper para o serviço do pai do Tiago Alagoa, no MAP, aprendia a conhecer a arquitectura do edifício e as relações entre os funcionários. Às quartas-feiras de tarde ia mais cedo para casa ou ficava para a sessão de cinema com a desculpa de algum trabalho de pesquisa na biblioteca do Liceu. Explorava um pouco as ruas à volta da praça e do castelo, ia a casa do Sandro, passava pela rua do Poço ao entardecer e ficava com a vista da Vila do lado poente.
Entretanto as geadas de Janeiro e Fevereiro, alguns dias com neve em que ficávamos em casa mais por tradição do que por real impedimento, a ansiedade pela Primavera, a ida ao Reboredo no dia Mundial da Árvore, com a carrinha azul do Professor Alfredo a abarrotar.
Depois os dias de sol de Maio e Junho, com a preparação da festa do fim do ano. Os ensaios com a Filipa e a Ana Abrunhosa, a Dina e a Cláudia, naquele palco de madeira no Polivalente do Liceu com umas cortinas vermelhas desbotadas. E lá dentro aquele palco tornava-se o mundo inteiro entre a uma e as duas da tarde, com todas as atenções viradas para a música do filme “Dirty dancing” (Dança Comigo). E para o final tínhamos planeado fazer umas guitarras de esferovite para interpretar em playback a versão “Live and Let Die” dos Guns and Roses. Mas depois não chegámos a conseguir ter tudo pronto para aquele grande dia, e nem sequer é preciso tentar lembrar-me dos motivos, porque éramos tão pequenos vistos a esta distância que até parece impossível termos tido a ideia e passado duas ou três semanas em ensaios contínuos naquele lugar, depois da hora do almoço e antes das aulas da tarde.
Mas o mais complicado ainda eram as manhãs, estava habituado a ter aulas só da parte da tarde, nos anos da Telescola, e para chegar às 8:30 a Moncorvo era preciso levantar-me pouco depois das 7h da manhã. Durante o primeiro ano fui com o Janeiro de Carviçais. Éramos cinco no Hyundai cinzento, o Janeiro e a mulher, o Filipe Janeiro, a Tânia Veríssimo e eu. Sempre as mesmas cassetes de música brasileira que variava entre Roberto Carlos, Chico Buarque, Tom Jobim, Maria Bethânia.
O regresso era feito nos autocarros da empresa Santos. A primeira vez entrei com os alunos mais velhos de Carviçais tinham todos mais de 16 anos, não conhecia quase ninguém. Sentei-me ao pé do Luís Libano e paguei um bilhete inteiro, duzentos e quinze escudos. O Luís cheteou-me – Porque é que não disseste que tinhas passe?
Depois havia o último dia de aulas, em que tentávamos entrar na discoteca Olímpica com 13 anos acabados de fazer ou então íamos à piscina do Jaloto ou apanhávamos o autocarro para a Foz do Sabor. Lembro-me bem do ano de 1995, havia guerra na Jugoslávia e a euforia dos anos noventa estava a cobrir-se de uma neve da mesma cor do terrível Inverno de Sarajevo.
Mas em Trás-os-Montes o bom tempo tinha acabado de chegar e o professor de filosofia deu-nos ordem de expulsão – Não voltem a aparecer até ao dia das matrículas.
Éramos sete, quatro raparigas e três rapazes. Apanhámos o autocarro das 10h e seguimos por uma estrada estreita e cheia de buracos à volta dos montes que desciam até ao vale do Sabor. Saímos antes da ponte da Portela e descemos por um carreiro até começarmos a encontrar o resto dos colegas que tinha vindo das aldeias do outro lado do rio. Atirámos com as mochilas e com as toalhas para debaixo das árvores e entrámos pela água doce com a mesma roupa com que acordámos de manhã.
Tinha passado o ano a dar explicações de biologia e matemática e nessa tarde percebi que nem tudo batia certo com os livros e a teoria. O almoço improvisado e a tarde como um braseiro espalhado à nossa volta, nem uma brisa para embalar o som das cigarras e dos pássaros recolhidos entre as árvores. De vez em quando um guarda-rios atravessava as margens rente à água e nós atirávamos pedras e descobríamos barcos de madeira escondidos atrás de arbustos e mergulhávamos até apanharmos as raparigas pelas pernas e as puxarmos para debaixo da água escura, onde quase tudo nos era permitido.
Voltávamos à vila em tronco nu e com o calor a inchar-nos o peito. Despedíamo-nos na esplanada do Búzio ou do Convívio, bebíamos as primeiras cervejas e dizíamos até para o ano à mesma hora. Até que deixou de haver Liceu para nós e tardes no rio e até o rio deixou de o ser. Ao menos a Torre da Igreja continua no mesmo sítio, com a figueira lá no alto, será que ainda dará figos este ano?


Torre de Moncorvo, Biblioteca Muncipal, 10 de Agosto de 2012
Fotos:na primeira,Rogério ,Tiago ,vereador Teixeira e representante da AJUM;na segunda,assistência;na terceira, sessão de autógrafos;na quarta, Tiago na Poética.

4 comentários:

  1. Gostei de ler este atigo sobre o Tiago. Parabéns

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  2. Interessante o texto.... e para quem conhece a vila ,e viveu um percurso escolar e muitos e belos dias passados na ponte e rio sabor, esse descrever é mesmo de quem foi feliz em moncorvo...maravilhosa terra e maravilhosas as suas gentes.

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  3. Belíssimo texto. Cheio de interesse para os ganapos daquele tempo.

    Abraço
    Júlia

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