terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O MANCO - Entre Deus e o Diabo.Por:António Sá Gué


Sentiu os vapores na traqueia a penetrarem nos pulmões, sentiu arrefecer o seu ser, sentiu os músculos a relaxarem mas sem nunca perder a rigidez de quem está vivo, de quem sente, de quem está sempre alerta. Sentiu os dentes penetrarem no couro duro que lhe tinham colocado na boca. Sentiu o bisturi do médico, a frieza do metal a entrar na pele, sentiu apertarem-lhe ainda mais o torniquete que lhe garrotava a perna, sentiu a desarticulação do joelho, nenhum movimento de bisturi lhe escapou, apesar dos vapores continuarem a penetrar profundamente em si, a retirar-lhe capacidades intelectuais e físicas mas não o sentir. Era como se estivesse num pesadelo, um pesadelo do qual queria acordar mas não conseguia. Um torpor profundo impedia-o de se mexer, de levantar um único dedo para fazer um sinal, um gesto de compaixão, apesar de o pretender fazer com todo o seu querer. Era tudo tão real e paradoxalmente ilusório que lhe parecia estar em um outro mundo. Uma dimensão paralela à realidade, a dimensão dos enigmas da vida, a dimensão dos amargores sempre bebidos com sofreguidão, de um só trago, pela taça de libações sangrantes, deglutidos sem a ternura, sem perfumes, sem a maciez do amor. Seguiu a linha das marcas dos pensamentos gotejantes de sangue vivo, apapoilado, marcados em si com ferros em brasa.
Deixou-se ir naquele enlevo doentio da dor, cavalgou no dorso do rugir do leão, trepou as paredes como animal demoníaco, desafiou a gravidade e suspendeu-se no tecto da sua gruta recôndita como morcego hematófago e, imóvel, ali ficou a alimentar-se do seu sofrimento, a deixar crescer dentro dele aquele animal que lhe rasgava o peito e o devorava a partir de dentro. Ali ficou a olhar-se do alto, a sentir-se, a perscrutar os movimentos do bisturi, a observar-se mutilado mas ainda a sentir a dores fantasmas de uma parte de si já inexistente.
(…)
 Pequeno texto inédito, que faz parte do próximo romance de António Sá Gué que se intitula: O MANCO - Entre Deus e o Diabo.
Foto da responsabilidade do editor.

4 comentários:

  1. Belo texto ,escreve muito bem.Gostei muito do seu livro Quadros da Transmontaneidade.
    Quando sai o livro?
    Leitor

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  2. Texto escrito com uma navalha,à transmontana:hoje,ontem e sempre.Quando terminei de o ler saíu-me à boca um palavrão.Ficou só para mim.Na segunda leitura sorri.Somos assim.Talvez tivesse sido escrito com um machado de pedra encontrado em Silhades.
    Alexandre Gomes.

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  3. Viva, Sá Gué:

    Quando acabei de ler o texto, precisei de um hausto de ar bem fundo, porque quase fiquei sem fôlego !

    Um grande abraço
    Júlia

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  4. Olá a todos!

    A avaliar pelos comentários que aqui foram postados parece justo concluir que os "Quadros da Transmontaneidade", de alguma forma, tocaram muitos daqueles que têm a amabilidade de me ler. Se é correto concluir isto quer dizer que a ideia subjacente ao livro, que era ir à procura da identidade transmontana, então também é justo dizer que valeu a pena escrevê-lo.
    Não, não creio que sejamos talhados a machado. O efeito, as emoções, que as palavras produzem nos outros dependem, como é lógico dos leitores e das circunstâncias, mas parece-me que existe nele também muita sensibilidade. Com palavras duras, talvez, mas não passa de uma forma de expressão.
    Relativamente ao "Manco – Entre Deus e o Diabo" ainda não tem data marcada, mas será para breve. Esta pequena passagem, que bem podia ser intitulada “A Descoberta da dor”, corresponde ao momento de amputação de uma perna a alguém que viveu nos finais do século XIX, numa época em que ainda não havia anestésicos, e só encontrei palavras que tiram o fôlego, como diz a amiga Júlia.
    Um abraço,

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