quarta-feira, 19 de março de 2014

19 de Março, é Dia do Pai. Dia de São José também.


A propósito, vou contar-vos um episódio que, visto em retrospectiva de quase 70 anos, até tem certa graça.
Tinha eu 6 para 7 anos e frequentava a catequese, como toda a criançada da Corredoura e da  Vila. Aos Domingos, pelas 3 horas da tarde tocava o sino para a catequese  e lá ia a miudagem toda a correr para a Igreja.   Havia várias catequistas que nos agrupavam de acordo com a nossa idade. Calhou-me uma freira do Asilo. Ainda era nova e tinha uma voz macia. Como éramos as mais pequenitas, em vez de decorarmos as perguntas e respostas do catecismo, a freira contava-nos histórias de santos e mártires: Santo António, S. Paulo, S. Sebastião, S. José e por aí fora. Gostávamos todas de histórias e ficávamos muito atentas. Eu prestei uma atenção muito especial a S. José,  porque era ( e é) meu padrinho.

O padre Félix aparecia às vezes nas aulas de catequese  e, em um ou outro grupo, esclarecia qualquer ponto mais complicado. Sobre S. José explicou-nos que  “ não era o verdadeiro pai de Jesus, pois Jesus era filho de Deus, concebido por obra e graça do Espírito Santo” . Uma complicação.  Então perguntei se S. José era  “ o padrinho de Jesus” .  “Não, S.José é o pai putativo de Jesus”, foi a resposta . Creio que ficámos todas aparvalhadas, pois a palavra  “putativo” ressoava fortemente a algo obsceno.
Como já sabia ler bem e  tinha a curiosidade de saber o significado das palavras que não conhecia, o meu pai dera-me um pequeno dicionário de Português e ensinara-me a utilizá-lo. Por isso, mal cheguei a casa, fui logo ao dicionário procurar o significado daquela palavra repugnante. Encontrei : “que se supõe ser, mas não é” .  Pareceu-me  mais uma adivinha do que  um esclarecimento  e claro que eu não consegui adivinhar.  Ainda havia um  segundo significado :   “ reputado”.   Aí a minha confusão foi total, poisa palavra “reputado” soava ao meu ouvido tão obscena como “putativo”.  
Tudo isto se passou entre Junho e Agosto, época da 1ª Comunhão das crianças de 9 e 10 anos. Em Outubro entrei na esccola. Levava os caderninhos da cópia e das contas já assinados  como meu pai me ensinara : Maria Júlia Barros. A professora chamou-me junto dela e, em voz baixa e bondosa, disse-me que na escola não podia assinar com o nome de meu pai. Lá fora podia, na escola não.  “Porquê?”   “ Porque há uma lei que não considera o teu pai como teu pai”.
Comecei a pensar que o meu pai devia ser putativo, como S.José.   A palavra continuava a repugnar-me e o pior é que  não me saía da cabeça.  Até que um dia resolvi perguntar directamente ao meu pai : “ O senhor é meu pai putativo?”  Primeiro, o meu pai ficou sem fala; depois disse : ”Calma” , porque  a minha mãe já estava de mão no ar para me pregar  um par de estalos pelo palavrão que eu dissera .  Então relatei a cena da catequese  e expliquei também que na escola o meu pai era como se não fosse meu pai e, por causa de uma lei, eu não podia  assinar com o seu nome. 
Depois de, com muito carinho, me ter explicado que essa feia lei se chamava Concordata,meu pai prometeu-me que, quando a lei mudasse, ele seria meu pai em todo o lado e eu usaria o seu nome .  Isso aconteceu quase 30 anos depois.

Leiria, 18 de Março de 2013
Júlia Barros Ribeiro

14 comentários:

  1. Já fui ao dicionário procurar a palavra PUTATIVO que eu não conhecia e lá estão esses mesmos significados.

    << Dicionário de Português, Porto Editora Lda , 5ª edição>>

    ResponderEliminar
  2. Ele há situações tramadas.
    S.José *pai putativo* de Jesus! E Dia do Pai.
    Ora esta ! O qua gente aprende por estes lados.

    Melro

    ResponderEliminar
  3. Este texto faz pensar en muita cosa - pais e filhos, famílias , religião, escola, as leis injustas de um país .
    Gosto do que esta senhora escreve.
    Obrigado e ao Sr. Lelo tamben.
    Antonio M. apreciador deste site.

    ResponderEliminar
  4. A memória desta senhora é fenomenal e sabe contar muito bem.
    Por outro lado creio que toda a sua vida é muito cheia, muito rica. De certeza que estes momentos que nos relata foram e são grandes lições de vida.

    Muito obrigado
    J.Terra

    ResponderEliminar
  5. Nem a "explicação" do padre Félix nem o "esclarecimento" do dicionário satisfizeram a curiosidade da menina Julinha ...
    Tão bem contado!Como,aliás,todos os outros episódios da sua infância e não só.
    Bem-haja por me fazer rir mais uma vez.
    Grande abraço.

    Uma moncorvense

    ResponderEliminar
  6. Tem muita graça, mas no fundo faz refletir . Gosto das suas estórias-memórias, minha Senhora.

    + 1 leitor dos Farrapos

    ResponderEliminar
  7. Olá Júlia,



    Gostei muito de ler o texto sobre S.José. É enternecedor e comovente ao pensar que tudo isto se passou com uma criança de 6 anos vítima de uma lei obscena. Depois, com o distanciamento no tempo e com bastante abstração conseguimos e até achar muita graça.


    Um abração
    Rosa Veludo

    .

    ResponderEliminar
  8. A menina Júlia é espetacular.. Eu estou a imaginar a criancinha com a cabeça cheia de duvidas a folhear o dicionário.. Mas deixe lá., o seu pai é tão importante como o s. José. Parabéns pelo seu bom humor e por partilhar as suas historias de vida..

    ResponderEliminar
  9. Um abração a todos os blogueiros, aos que comentam e aos que lêem.

    Júlia

    ResponderEliminar
  10. Teresa Malburet :
    Gostei muito : lindo texto!!!

    ResponderEliminar
  11. Olá Julinha!
    Mais uma vez Parabéns pelo texto que nos apresentou e deliciou a todos.Os Parabéns são redobrados pela coragem com que aborda esta e tantas vivências da sua vida.
    Para o meu Pai envio um beijo de eterna saudade.
    Beijinhos da amiga
    Irene

    ResponderEliminar
  12. Olá, Ireninha:

    Muito gosto de a ver aparecer por aqui e obrigada por palavras tão amáveis.

    Um abraço muito grande da amiga
    Júlia

    ResponderEliminar
  13. Com um bem haja, outro abraço para a amiga Teresa Malburet.

    Júlia

    ResponderEliminar
  14. O Rochinha virou 2 vezes. Agora é S. José. Haja respeito

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.