sexta-feira, 7 de junho de 2013

Zulmira morreu 13: O perdão possível


O marido de Zulmira anda por estes dias às voltas com a sua própria consciência. Trá-la no bolso das calças coçadas pela tímida saudade que passa por ele, ao longe, para não se arranhar na sua frieza. De vez em quando a solidão instala-se por mais tempo que o normal na oficina e Joaquim tira o papel amarrotado do invólucro do passado que traz agarrado ao próprio corpo. Pensa o marido de Zulmira que ali a memória está segura e livre de julgamentos. Já sabe as palavras de cor. No início teve de ler uma a uma, devagar, e depois relê-las seguidas, mais depressa, para fazerem o sentido que estava sempre a perder-lhes.
Perdoa-me.Peço-te perdão pelas mil coisas que me afastam de ti.
Joaquim pára para expirar lembranças. Quase dera a carta à filha mais velha para ela lha ler. Não percebeu de imediato que a carta era uma carta de Zulmira. E que era só para si. E que era de despedida. Estremece quando pensa que a filha poderia ter lido aquele adeus doído da mãe,atravessado de uma infelicidade na qual Joaquim tinha uma parte importante. E prossegue com aquela falsa sensação de alívio.Prossegue o reconhecimento das palavras que já sabe de cor, bebendo a forma das letras desenhadas pelos dedos magros e tristes da mulher que afinal não fora sua. E lê sem ler. Olha para o fantasma de Zulmira enquanto percebe que ela sabe que Joaquim havia de querer perdoar-lhe. Que havia de querer perdoar-lhe por mil coisas completamente diferentes daquelas pelas quais ela lhe pedia perdão.E imagina-a enquanto ela pede perdão pelo desacerto das coisas que os afastaram. Imagina-a a dizer que gostava que ele lhe perdoasse as coisas certas. E a supor que teria ela, talvez, de lhe perdoar a confusão em vez de tentar perdoar a sua falta de perdão. Porque Zulmira sabia que era mais fácil para ele refugiar-se numa responsabilidade alheia, que nunca existira, culpar uma circunstância maior do que uma pequena à qual Joaquim nem saberia pegar, de tão ínfima. Não tinha dedos que lhe segurassem tão pequena culpa.Afastados pelas pequenas coisas, assim tinha sido. As que Zulmira não sabia dizer. As que Zulmira sabia que Joaquim também não sabia dizer - ela escrevera-o com palavras que Joaquim já sabia de cor. E sabia que, por isso, as colocavas nas mãos com que lhe batia, para tentar livrar-se delas sem ter de as dizer.
Joaquim sabe tudo de cor. Ainda assim volta a colocar a carta no bolso coçado das calças. E pensa, tantas vezes, como pode um pedido de perdão fazê-lo sentir tamanha culpa.

3 comentários:

  1. Margarida Conde escreveu: Belo texto. Gostei de ler.

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  2. Maravilhosa prosa com cheiros de poesia.A Zulmira é a minha blognovela!Obrigado!
    Leitor

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  3. A escrita da Virgínia do Carmo é extraordinária.
    Na sua forma, transmite uma paixão enorme pelas palavras (...no princípio era o VERBO... ).
    Na sua essência, consegue elevar-se - e arrastar-nos com ela - a alturas que nem sonhávamos !

    Obrigada, Virgínia. Beijinho.
    Júlia

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