quarta-feira, 12 de março de 2014

"Que hei-de eu escrever sobre o deslumbre que são as crónicas de Amadeu Ferreira?",por Júlia Ribeiro

 “Um Excesso que em tudo se entranhou”
 Penso, ou melhor, sinto que não devia escrever uma só palavra e  antes  dizer aos leitores : “ Lede e vereis com os próprios olhos quão perfeita é cada crónica e, à perfeição, nada se deve acrescentar” .
Deixado este aviso, vou tentar, tant bien que mal, cumprir a tarefa de que fui incumbida.
Li as crónicas, uma por uma,  à medida que elas eram publicadas no Facebook. (Foram, aliás, a motivação para eu entrar no Facebook). Como mandam as regras, observava primeiro as fotografias de Luis Borges que lhe serviam de mola. E que extraordinária mola! Notáveis essas fotografias! É espantoso como fotografia e crónica formam um todo, um nó que não se desata e só possível, porque se trata de dois enormes artistas.
Através destas crónicas apercebemo-nos de diversas facetas do autor : o Homem simples que ama a terra e com ela e com os que a trabalham se identifica: o pastor, o vaqueiro, o malhador, o gadanheiro ...  a Mulher que coze o pão e o folar, e lida na cozinha , e ajudou a construir os socalcos, e que também é pastora, e serve de arrimo e companhia ao homem, avultam na sua galeria de retratos.  Mas não se imagine que esses retratos são tão somente físicos. O escritor questiona-se sobre  a jornada do homem ao longo da sua existência e para lá dela.
Por exemplo, tomemos a crónica  “Um Excesso que em tudo se entranhou”:  “ ...beleza, rio, gente, clima e dureza de uma vida que ainda mostra as crostas das feridas que continuam a doer, pois outra seria a paisagem sem as marcas humanas que a fizeram, e  apagá-las é um crime.”;
Ou estoutra : “Chaga viva de um sonho de eternidade” (sobre a Anta de Zedes).  Escreve o autor no final : “... já foi morada de mouras, e hoje é uma casinha de brincar ao tempo, chaga viva de um sonho de eternidade que ainda não conseguimos alcançar, mas nunca deixámos de perseguir.”.
Anta de Zedes
 Outra dimensão, que não está desligada da primeira, é o seu amor pela Natureza: montanhas, rochas, fragas, rios, e todas as plantas desde centenários e carcomidos castanheiros até às ervinhas  que só sabe nomear na língua em que bebeu o leite materno:  yerba bota, carniçuolos, garabatina, yerba pingoneira, fedieiras, niebros, scobielha, etc. .
Vejamos o início e o fim da crónica “O Caminho da Sabedoria”:         “ erguem-se as rochas como um imponente grito vindo do fundo do tempo, feridas já cicatrizadas das convulsões da terra. [...] se o nosso respeito vai todo para a imponência das rochas e das altas montanhas, e às ervinhas apenas desprezo reservamos, isso mostra como ainda tanto temos para andar no caminho da sabedoria.”
Os medronheiros  são  “Fogueiras acesas à porta do Inverno”  e aí lemos: “...nunca me chegavam a aquecer as mãos da minha infância, mas os olhos ardiam sempre na febre de um deslumbramento que ainda hoje dura.” .
A este apego à Natureza se associa o apego aos animais, companheiros de caminhos, de solidão  e de trabalho: as ovelhas, as mulas, os burros, os bois, cada vez menos utilizáveis e menos utilizados , substituídos por máquinas que vão afastando mais e mais o homem da terra, donde tudo nasce e tudo se acaba.
Também nos apercebemos facilmente do Homem da Polis, do cidadão, pois o Amadeu como tal se afirma. É um homem profundamente ligado às suas raízes, mas não é saudosista nem pretende um regresso ao modo de vida que os seus pais e avós viveram. É nesta perspectiva que nele  entrevemos a sua jornada desde  menino de olhos inocentes, atento e observador até ao homem feito, com seus problemas e suas dúvidas, que  não aceita a injustiça e sonha um mundo melhor.
Deixemos que ele próprio se nos apresente e, para isso, basta ler duas crónicas  “O Varredor de Lembranças” (sobre as malhadas e a limpa do grão na eira):  “... bons tempos que eram, escreve o solitário varredor com a tosca giesta; bem sabe que não eram bons tempos e que a fartura não passava de uma suavizada fome, mas tem razão : era jovem ainda, respirava a aldeia e estavam quase todos vivos.” ; 
e esta outra crónica extraordinária  “Património da Humanidade: contributo para uma noção que anda muito deturpada”, que termina assim:  “é o nosso património, material e imaterial, o que nos fez chegar até aqui e exprime o saber da nossa convivência com a natureza, acumulado ao longo de séculos e alimentado a suor , sangue, carinho, entreajuda e muita inteligência: seja qual for o futuro, estamos em perigo se esquecermos uma lição simples: monumentos são as pessoas, o resto é obra. “.
Não desespere o leitor: vou só deixar mais meia dúzia de palavras sobre Amadeu Ferreira poeta, pois o poeta invade as suas crónicas. Para mim foi,  é, um maravilhamento  ler estas crónicas, na sua linguagem clara, que nos traz ao ouvido o fino toque do cristal e ao coração o seu estilo forte e arrebatador, com frases que nos atingem ora como afagos, ora como punhos, deixando-nos,  por vezes , sem fôlego.
 Houve momentos em que pensei estar a ler Pe. António Vieira. Por exemplo: “Deuses, o convite da Montanha” :  “...ao longe as montanhas são deuses, solenes, altivas, inacessíveis, misteriosas, já  mais céu do que terra; ...”  ou  em  ”O Escultor e a sua Obra: Auto-Retrato” (sobre a Mêda de Rocalva, enorme rocha em que cada um pode descobrir estruturas antropomórficas) : “... coseu-lhe o rosto desfigurado, deixando à mostra as costuras da linha do tempo e as cicatrizes das tempestades: afagaram-na os ventos, lavaram-na as chuvas, esculpiram-na os milénios e imperceptivelmente ela vai-se esvaindo em areia e pó, débil na sua dureza, enganadora na sua grandeza...”.
Vejam  aqui  o poeta por inteiro:  “Ternura que em seio de pedra se alimenta”  :  “sobe do rio a noite, trazida por um silêncio que acaricia a pele da água, enquanto as arribas vão estendendo um lençol de sombra  [...]  e segues em silêncio, nem sabes se esmagado por tanta beleza, que até as palavras se fizeram pedra.”.
Para terminar as citações, (o leitor terá o prazer de, já de seguida, ir ler todas as crónicas do Amadeu Ferreira), não quero deixar de vos apresentar duas ou três linhas de uma das mais belas e que espelha o lado sonhador do poeta-cronista: “Livro de Horas” –“desesperas sempre a ler o livro do rosto, ainda por decifrar essa escrita do tempo com tinta de lágrimas e riso, iluminura de angústias e de afectos, sempre aberto livro de horas onde o fogo dos sonhos não se apaga”.
   
Leiria, 08.11.2013   
Júlia Guarda Ribeiro  

 Luís Borges e Amadeu Ferreira: https://www.facebook.com/pages/Lu%C3%ADs-Borges-e-Amadeu-Ferreira/246368075500628?fref=ts                                                 

8 comentários:

  1. Fotografias e textos são de uma qualidade rara.Fiquei, também eu,deslumbrado.
    Leitor

    ResponderEliminar
  2. Teresa Martins Marques:
    Parabéns, Júlia Ribeiro, por este belo texto, que faz justiça ao trabalho de dois artistas notáveis.

    ResponderEliminar
  3. Odete Coelho:
    Obrigada Júlia, Leonel e Teresa pela partilha. Tão bom revisitar estes farrapos e estar mais um pouco na companhia do Amadeu e do Luís Borges. É sempre um renovado prazer passar por aqui:)

    ResponderEliminar
  4. Ana Diogo :Belíssimo este texto de Júlia Ribeiro sobre as crónicas de Amadeu Ferreira nos Farrapos de Memória - crónicas essas que tenho o prazer de seguir através de Lelo Demoncorvo. Muito obrigada a todos pelas excelentes partilhas

    ResponderEliminar
  5. Teresa Martins Marques:
    E parabéns ao Leonel, porque faz, com tantos sucesso, estes Farrapos de Memória. Diga-me lá quantas visitas é que estes "Farrapos "têm?

    ResponderEliminar
  6. Guida Sales : A beleza das fotografias do Luis Borges, o encanto das crónicas do Amadeu Ferreira e este fantástico texto da Júlia Ribeiro também me deixaram deslumbrada. Nunca é tempo perdido uma visita a estes "Farrapos de Memória". Parabéns ao Lelo Demoncorvo.

    ResponderEliminar
  7. os retratos de Luis Borges e as falas escritas de Amadeu Ferreira permitem-nos fixar os olhos, entrar nas palavras e voar.
    O texto e a sua autora apanha l'aire que assopra, entra nas palavras e nos retratos leva-nos na boleia da poeira cósmica.
    Pois, o amigo Leonel, abre a janela e os tiras de "farrapos" permitem que a luz entre e tudo mostre.

    Bienhaiades todos

    António Cangueiro

    ResponderEliminar
  8. Deslumbram-me todas as estórias da Julinha,encantam-me textos como este.
    Parabéns a todos : Julinha,Poeta e Fotógrafo.

    Uma moncorvense

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.