quinta-feira, 19 de junho de 2014

GEOGRAFIA PARTICULAR, por Ernesto Rodrigues

Tenho à minha frente uma montanha de nomes - todos contistas. Um que outro sachou aqui romance, coisa mais de estranhos' que de naturais. Agigantou-se a poesia em alguns, mas o melhor dela guarda-se no intérmino romanceiro (e no menos estudado cancioneiro) que faz deslocar à raia sucessivas inteligéncias logo vencidas no coração. O conto casa bem, pois, com a oratura. Foi terra de avós que os anos sessenta tornaram órfáos: de filhos emigrantes e netos com futuro que já não só o da lavoura. Nas fainas ou à lareira interiorizávamos as regras da narrativa - «E depois, avô, -, donde pensar que, junto à figura do romance que na montanha esforçadamente se ergue, merecemos obras cimeiras em género de mais vasto andar e largo fôlego. Justificando, afinal, as renovadas panorâmicas até ao fio do horizonte...

Souberam, no quadro breve, dar o sangue e a carne que seres de papel ainda admitem. São personagens determinadas, impositivas no discurso da língua, que, de tão singular, fica já bem documentada e pode revolver- se para as próximas sementeiras. Mas há subtilezas que leigo nâo vé, doce é Trindade Coelho, como não direi de Torga ou de Araújo Correia, mais alcantilados no termo ou no cachoar das paixões - e, todos, dramáticos; aos mais etnográficos respondem rocas e fusos de quem, ainda ai, não perdeu a balanceada nostalgia dos caminhos aos soluços - doença de quem se achou disperso e fora de marcos ou referências.
A grandeza dos tipos vai na sua inquebrantável unidade, corpos de um só lema e tinta de uma cor. O conto é uma forma de pensamento. A conexão de vidas aí pontuadas, se lida dinamicamente, deixa já entrever o tal propósito romanesco. Mostrei, em tempos, baralhando os contos, um dilacerado jogo contra pontístico em Os Meus Amores (talvez, com os de Eça, a obra do género mais editada em Portugal)'. Dessa «descrição, semelhanças e variantes, vim desembocar na unidade prismática que pode configurar o romance; além de que provei «quanto existe de tensão sob uma escrita aparentemente serena, como teimam em dizê-la enganados pela luminosidade, pelos espaços edénicos mais fictos que de facto. A doçura, a generosidade (abrupta, logo mãos rotas), as portas abertas, em suma, conduzem à outra face, de vincos fundos. A memória deve ser assim, marginada por veigas e salgueiros pipilantes: ou de lavadas pedras, altivas, sem concessões a espasmos de letras e vociferar partidário.Terminemos. Lacónicos, autores e a tão discreta modalidade do conto não me exigem mais prosa, que outros, transmontanos e altodurienses de raiz ou só devoção, dariam melhor. Na minha floresta de altos cimos, entre Junqueiro E Torga, sucedem-se as clareiras. E temos, originário e modelar, um tronco elevado e poderoso: certo Francisco de Morais, autor desse monumento europeu intitulado Palmeirim de Inglaterra. Quis dizer como não se escapa ao prirneiro lodo.

Notas
* In Ler-Livros & Leitores (Lisboa), 10, Primavera de 1990.
1) Por exemplo, António Rebordão Navarro, Um  Infinito Silêncio, Lisboa, 1970: Viamonte corresponde a Vimioso.
2) Agora, em Cultura Literária Oitocentista, Porto, 1999, p. 257-266.


Nota do editor do blog: Este texto está incluído no livro "Pátria Breve" de Ernesto Rodrigues, edição Textype.

Ernesto Rodrigues

Ernesto Rodrigues (Torre de Dona Chama, 1956), poeta, ficcionista, crítico, ensaísta e tradutor de húngaro, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente de direcção da Academia de Letras de Trás-os-Montes.

Principais obras: Várias Bulhas e Algumas Vítimas, novela, 1980; A Flor e a Morte, contos e novelas, 1983; Sobre o Danúbio, poesia, 1985; A Serpente de Bronze, romance, 1989; Torre de Dona Chama, romance, 1994; Histórias para Acordar, contos para a infância, 1996; Sobre o Danúbio / A Duna Partján, poesia e ficção, 1996; Pátria Breve, miscelânea, 2001; Antologia da Poesia Húngara, 2002. Na crítica e ensaio, seleccionamos: Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal, 1998; Cultura Literária Oitocentista, 1999; Verso e Prosa de Novecentos, 2000; Visão dos Tempos. Os Óculos na Cultura Portuguesa, 2000; Crónica Jornalística. Século XIX, 2004; «O Século» de Lopes de Mendonça. O Primeiro Jornal Socialista, 2008; A Corte Luso-Brasileira no Jornalismo Português (1807-1821), 2008; 5 de Outubro - Uma Reconstituição, 2010. Responsável pelos 3 volumes de Actualização (Literatura Portuguesa e Estilística Literária) do Dicionário de Literatura dirigido por Jacinto do Prado Coelho (2002-2003), editou, entre outros, Padre António Vieira, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão, Trindade Coelho, José Marmelo e Silva, António José Saraiva.

4 comentários:

  1. Ana Diogo :
    Esta sim, é uma surpresa total para mim! Não conheço o livro, mas o título e a capa são tão belos que despertam logo o interesse na leitura. E com o selo de aprovação de Teresa Martins Marques, leitora / autora de excelência, como duvidar da qualidade superior do conteúdo?! Obg. pela partilha Lelo Demoncorvo.

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  2. Teresa Martins Marques :
    Adoro este livro do Ernesto Rodrigues !

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  3. Ernesto Rodrigues :
    Este livro sobre a 'pátria breve' transmontana é, já, uma raridade bibliográfica. A textura do papel nota-se na reprodução desta bela fotografia. Grato, pois, ao Leonel Brito.

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  4. Um texto notável, de um livro que não tenho e penso que é um pecado mortal não ler.
    Dois abraços : para a Teresa e para o Ernesto.

    Júlia

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