segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ZULMIRA MORREU 16: METADES



Zulmira morreu antes do meio-dia de uma segunda-feira. Uma segunda-feira partida ao meio pelo descuido de Zulmira, que decidiu desfazer o seu novelo de expirações até ao fim quando a malha da vida estava pela metade. Ou não.
Em pequena havia perdido a sua melhor amiga. Dava por si muitas vezes a pensar e a perguntar-se como se mede o tamanho de uma vida. Se pelo número de dias, se pela quantidade de momentos felizes. Ou seria pelos beijos que se dão, pelos amigos que se fazem, pelos filhos que se têm? A sua melhor amiga vivera tão pouco que nem metades serviam para explicar as proporções da sua existência.
Zulmira perdera a nitidez desse tempo antes que ele tivesse terminado. Talvez a memória, por vezes, queira poupar-nos do que não podemos entender. Mas a dor ficara. Aquela dor esboroada, sem contornos, que Zulmira não sabia onde começava. E duvidava que houvesse um lugar ou um tempo que pudesse servir-lhe de fim. A perda irreparável de um ser.
Lúcia.
Houve noites em que só aquele nome entrava nos sonhos de Zulmira. E dias em que toda a sua existência consistiu desse nome escrito nas folhas brancas do caderno da escola. Nada mais cabia em si. Só a dor de um nome. O ruído de três sílabas a bater desesperadamente nos vidros da janela do seu quarto. O comprimento de três sílabas a ocupar os corredores da sua casa. A opacidade de três sílabas a pousar sobre todas as alegrias do mundo.
Zulmira não estava certa do dia da semana em que se estava, ou do tempo que fazia na manhã em que Lúcia não apareceu para ocupar o lugar na carteira, ao seu lado. Nem sabia quantos metros correra nessa tarde para ir saber da amiga. Não sabia, também, que roupa trazia vestida, que sapatos usava, como apanhara o cabelo. Já nem se lembrava como tropeçara e esfolara o joelho direito. Nem tinha a certeza se teria sido o direito. Talvez a memória, por vezes, queira poupar-nos da clareza das coisas como se a confusão pudesse afastar-nos da verdade. Zulmira perdera até a memória do rosto da mãe de Lúcia ao abrir a porta de casa. Sobe, Zulmira. Ela está no quarto. Terão sido estas as palavras?
Lúcia estava deitada como se a esperança de repente fosse um milagre distante. Zulmira percebeu que Lúcia estava muito doente. Não percebeu com o entendimento, percebeu com o coração, incapaz agora de reconhecer nas mãos quietas da amiga outras linhas que não as da tristeza. Percebeu que tudo doía a Lúcia. Percebeu que o seu corpo, de um momento para o outro, passara a pesar-lhe. 
Zulmira não se lembrava já de quantos dias haviam passado até que os olhos de Lúcia desaprenderam o gesto de despertar. O único detalhe definido era aquela certeza de que uma amputação sem anestesia lhe levara os significados de tantas palavras. Andou com um buraco no lugar das coisas vivas durante muito tempo. Não se lembrava já quanto. Dor, apenas. Dor. A dor que agora deixaria em herança aos seus filhos, numa segunda-feira partida ao meio. Mais tarde também eles haveriam de perder a memória do dia da semana em que tudo acontecera.

Virgínia do Carmo 

3 comentários:

  1. Um texto fabuloso ! Como, aliás, todos os anteriores.
    Quando publica o livro?

    Abraço
    Júlia

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    Respostas
    1. Júlia, o livro da Zulmira ainda não sei, mas fica desde já convidada para o lançamento do meu livro de poesia "Relevos", que acontecerá no dia 7 de Setembro, na Poética. :) Um grande bem-haja! Beijinhos

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  2. Já tinha saudades dos seus maravilhosos textos,Virgínia.Como a Julinha,também estou ansiosa pelo livro.
    Sucesso,no dia 7, para "Relevos".
    Abraço amigo.

    Uma moncorvense

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