terça-feira, 11 de novembro de 2014

Retalhos da História de Vila Flor - IX

AS FAMÍLIAS HENRIQUES JULIÃO E LOPO MACHADO NA INQUISIÇÃO DE COIMBRA.
 QUESTÃO RELIGIOSA OU LUTA POLÍTICA?
A FAMÍLIA DO CAPITÃO-MOR ALVARO MORAIS ATAÍDE
Na grande leva de Fevereiro de 1667, foram pelos menos 7 membros da família do capitão-mor e que passamos a apresentar, acrescentando sobre alguns curtas notas retiradas dos processos:
1 – Pedro de Morais. 52 anos, escrivão da câmara de Torre de Moncorvo, filho de Diogo de Morais, feitor mor das alfândegas de Trás-os-Montes. Dizia-se cristão-velho, mas os inquisidores descobriram-lhe ¼ de cristão-novo, pela parte de sua avó paterna, Catarina Álvares. Aliás, ele próprio saberia disso, como sabia que seu pai e dois tios paternos (Francisco e Pedro de Morais) haviam já passado pelas cadeias do Santo Ofício. (1)
Da extensa lista de seus bens imóveis, vamos apenas referir dois, que têm particular interesse para o estudo das quintas e propriedades agrícolas com história na região:

* O sítio de Nossa Senhora da Teixeira, que valeria 100 mil reis e que lhe tinha deixado em herança uma irmã de sua avó materna, D. Ana Borges, com obrigação de 2 missas em cada ano pela alma de Nicolau de Lobão, igualmente irmão de sua avó.
* A quinta do Rego da Barca, que valia uns 200 mil reis, herdada igualmente de sua tia-avó, com obrigação de 2 missas e vínculo de capela.
De referir também que à data de sua prisão, tinha 5 vacas de renda em mãos de lavradores no termo da Torre de Moncorvo.
Vendo-se acusado de judaísmo, Pedro do Sil começou por dizer que isso não passava de uma invenção dos cristãos-novos seus inimigos, especialmente de Diogo Henriques Julião e seus manos, que lhe tinham raiva por muitos motivos e concretamente por ter vindo a Vila Flor como meirinho do corregedor, aquando da prisão e fuga de um Manuel da Mesquita, parente dos Juliões. As vejam as próprias palavras do processo:
- Provará que os contraditados Diogo Henriques Julião e seus irmãos Luís Henriques e Rodrigo Fernandes e seus filhos e parentes de Vila Flor, estimulados do réu ir por meirinho do corregedor João de Medeiros Correia tirar uma devassa por provisão de Sua Majestade e da fugida de Manuel da mesquita, parente do dito Diogo Henriques Julião, que estava preso pelo pecado da bestialidade, andando em duas facções todas as pessoas da dita vila, de uma parte os da nação e da outra parte os homens nobres, buscando os da nação ocasiões para defrontarem os parentes do réu; e com efeito se fez grave rixa, sendo Gonçalo de Morais, irmão dele réu, juiz ordinário da dita vila, de que resultou ficarem culpados alguns deles (…) donde ficaram com maior ódio contra ele réu e mais seus parentes.
Do seu processo, retiramos ainda esta curta declaração de uma testemunha de defesa, João Borges de Morais que, depois de confirmar a cena da burra e da rixa, concluiu:
- E também sabe que os da nação andavam em dúvidas com os homens nobres sobre as varas do palio e governo da república.
2 – António do Sil, irmão do anterior, rendeiro, 45 anos. Foi denunciado por 22 testemunhas. (2)
Não vamos analisar o seu caso nem fazer quaisquer comentários. Apenas observar a relação de seus bens, no que interessa para a história local. Assim:
* Tinha umas casas sobradadas em que vivia, com seu quintal, na rua da Fonte, foreiras ao concelho da vila, pagando um vintém de foro anual e que valiam 5 mil reis.
* No sítio da Fonte tinha um terreno de semeadura de 2 alqueires com 2 pedaços de olival e uma vinha que valia 30 mil reis.
* Um olival e terra de cereal (10 alqueires) no sítio da Serra, com o valor de 25 ou 30 mil reis.
* Mais umas propriedades em diversos sítios, que ele comprou de 4 anos a esta parte no montante de 160 mil reis. Seriam as tais propriedades sequestradas a cristãos-novos e leiloadas na praça, de que atrás se falou?
* Em Benlhevai, tinha também 2 vinhas, 2 lameiros, uma casa de sobrado e terras de pão e tudo valeria uns 30 mil reis.
* Domingos Martins, cristão-velho, tendeiro, devia-lhe 30 mil reis que “ele declarante lhe entregou para lhe comprar na cidade do Porto uns ornamentos para a ermida de S. Jorge que ele declarante mandou fazer junto às suas casas, em Vila Flor”. E esta é uma nota bem interessante para o estudo do património da vila e da evolução urbana.
* Na qualidade de rendeiro, trazia arrematada a cobrança das rendas da Mitra de Braga, no montante de 160 ou 170 mil reis e uns foros do conde de Miranda, na área de Vila Flor, que ascendiam a 42 mil reis.
* E também tinha 12 ou 13 bois “dados de renda a diversas pessoas”.
3 – Maria de Aguirre, mulher do anterior, natural de Sambade, filha de Luís de Escobar Roubão e de Ana Aguirre. (3)
4 – António de Morais do Sil. Sobrinho de Pedro e António do Sil, filho de seu irmão Gonçalo e de Branca Teixeira. Certificaram os inquisidores que ele tinha 1/8 de cristão-novo. Tal como certificaram a sua morte no cárcere, 5 anos e meio depois de nele ser encerrado, em 27.8.1672. (4)
5 – Francisco de Morais Ataíde. Era igualmente sobrinho dos outros Sil, filho de sua irmã Ângela de Morais e do capitão-mor Álvaro de Morais de Ataíde. Tinha 28 anos quando foi preso. Era casado e pai de 4 filhas, a mais velha de 8 anos. Foi denunciado por muitos cristãos-novos de Vila Flor e também por gente de Vimioso (Vicente de Gambôa) e de Freixo de Numão (Ferreira Isidro). (5)
Defendeu-se destes e doutros denunciantes dizendo que foram instruídas por Diogo Henriques Julião, o qual foi ter com eles quando “estavam presos e depositados em Freixo de Numão”, na ida para Coimbra. De resto, os argumentos de defesa apresentados pelo réu constituem um verdadeiro tratado de sociologia de Vila Flor naquela época, repleto de episódios picarescos e caciqueiros. Vejam uma amostra:
Pêro da Costa era um advogado cristão-novo, solteiro, que foi na leva de presos de 1664. Em certa altura constou que ele andava metido de amores com uma mulher casada. E uma noite, a desoras, Francisco de Morais e o seu bando, foram bater-lhe à porta, feitos polícias, a saber da mulher. Levantou-se o advogado e veio em camisa abrir a porta. O filho do capitão-mor deitou-lhe as unhas “o puxou para fora pelas gadelhas e o lançou no chão lançando-lhe muitos coices”, exigindo que fosse buscar a mulher. Respondeu que a não tinha em casa, mas estava em um lagar sito à Fonte do Olmo. Alguns ficaram a guardar a porta e outros seguiram com ele, que foi assim, descalço e me camisa de dormir, a buscar a mulher, conforme lhe ordenaram.
Mas já de outra vez o tinham levado à força para um olival sito nas bandas da Portela e ali o espancaram e ameaçaram matar se ele não lhes entregasse a tal mulher. E claro que Francisco, depois de contar o episódio, não deixou de frisar que Pêro da Costa era parente e advogado de Diogo Henriques Julião “e de sua casa comia e bebia e o servia como criado”.
Da denúncia de João Lopes, o surdo, defendeu-se dizendo que ele “é inimigo do réu porque tendo um macho muito formoso e de preço e que não andava na estrada, o réu, necessitando de cavalgaduras para ir a Mirandela buscar pão, à força lhe tomou o macho”. E o pior é que o macho ficou com uma ferida no lombo, de tão carregado que foi. Assim, o testemunho daquele não deveria ser aceite porque foi motivado por ódio e espírito de vingança.
De igual modo argumentou acerca de possíveis denúncias de Pedro Guterres e Manuel Pinto. É que, tendo a Inquisição mandado ordem para se prender a mulher do primeiro, ela desapareceu. Mas o Francisco Ataíde tanto espiolhou que foi dar com ela em casa do Pinto, metida na cama, com a cabeça tapada, entre este e a sua mulher e ali a prendeu.
E vindo também ordem da Inquisição para prender a mulher do mesmo Pinto e sendo necessário juntar 20 mil reis, o capitão-mor pôs em leilão os seus bens. E entre esses bens “eram duas canastras encouradas novas com duas fechaduras cada uma, que bem valiam 4 para 5 mil reis e um primo do réu, António de Morais Sil lhe lançou nelas e valendo o dito preço se arremataram em 5 tostões”.
E também o Manuel Pinto foi preso pelo Santo ofício e então foram à praça seus bens que incluíam “as casas de sua morada, umas vinhas e um lagar de azeite e nesta fazenda toda lançou Jerónimo de Morais Beça, cunhado do réu, 2 mil reis e por não haver quem se atrevesse a lançar mais, nisso lhe foi arrematada”.
Mais casos do género podíamos apresentar, que a defesa de Francisco Morais de Ataíde se estende por uma centena de fólios do processo. Vamos porém concluir, transcrevendo dois parágrafos do mesmo processo, bem elucidativos da luta política que então se travava entre Diogo Henriques e o capitão-mor de Vila Flor:
- O pai do réu, capitão-mor, e seus parentes e homens nobres e graves de Vila Flor vendo que Diogo Henriques e seus parentes se queriam intrometer em quererem tomar em si o governo da terra, assim no secular e quererem e quererem servir nos ofícios da justiça e nas prisões, com muita ousadia e atrevimento pegarem e tomarem as varas do palio (…) se juntaram o pai do réu e os mais homens cristãos-velhos e nobres de Vila Flor e aí jogaram muitas pancadas e cutiladas, aonde os acutilaram a todos e a cada um deles, e fizeram à força recolher e meter em suas casas e com efeito nunca mais nenhum homem deles pegou em vara de palio.
- E além disso o pai e parentes do réu e todos os homens nobres de Vila Flor, vendo a soltura com que o dito Diogo Henriques e seus irmãos e parentes e todos os cristãos-novos se haviam e com muito atrevimento e ousadia se intrometiam para servir nos ofícios principais da república e governança, como também quererem tomar as varas do palio, o pai do réu, que nisso mais insistiu, obteve uma provisão de Sua Majestade para que nenhuma pessoa que fosse cristã-nova ou tivesse parte alguma da nação não servissem mais na dita vila ofícios da igreja nem da governação, de sorte que os privaram das varas do palio como de servirem ofícios da governação. Nem de juízes, nem vereadores, nem outros semelhantes (…) do que ficaram todos com grande ódio contra o pai do réu e contra ele réu e contra outros homens principais da vila, cristãos-velhos e sobre isso houve muitas diferenças.
E agora, como o leitor imagina, seria bem interessante analisar o inventário dos bens de um homem tão rico como era Francisco de Morais de Ataíde. Limitamo-nos apenas a apresentar dois itens desse longo inventário:
Tinha uma quinta que ele declarante havia comprado cujas casas estavam principiadas no sítio que chamam as Gamonitas, junto à quinta do Carrascal, que constava de terras de semeadura e olivais, a qual propriedade crê valer 100 mil reis e é livre e parte de uma banda com terras de Domingos de Morais das Flores e da outra com a estrada do concelho.
Um cavalo rocim de 4 anos selado e enfreado que vale 30 mil reis e 2 bois de arado que valiam 10 mil reis e tudo se vendeu, cavalo e bois, para alimento dele declarante, em preço de 40 mil reis.
6 – Maria de Morais de Ataíde, irmã do anterior, 26 anos, casada com Jerónimo de Morais Beça. Toda a estrutura do processo (acusação e defesa9 é idêntica à do irmão e dos restantes nobres, tentando provar que se trata de uma conjura urdida pelos cristãos-novos e que “ o autor e conselheiro” era Diogo Henriques Julião. E naturalmente que também este processo e os demais são fonte essencial para quem quiser estudar a sociedade de Vila Flor naquela época.
Mesmo sendo acusada pela própria irmã e sumetida a tormento, ela nunca confessou seu judaísmo.
Na parte final do processo, aparece uma petição feita por seu marido ao inquisidor geral para que lhe sejam perdoados os 149 mil e 900 reis que lhe foram exigidos por despesas de alojamento e alimentação na cadeia e custas do processo. Chamados a pronunciar-se os inquisidores de Coimbra ditaram o seguinte:
- Parece-nos que, em razão dos serviços que fez a esta Inquisição o seu sogro, o capitão-mor de Vila Flor, pode Vossa Senhoria mandar ao suplicante que pague 80 ou 100mil reis e lhe perdoe o mais.
E 12 anos depois que foi libertada, precisando seu neto José de Morais Beça uma certidão atestando que sua avó “que foi presa por esta Inquisição, saiu pura, sem condenação alguma”, a mesma foi negada porque ela “tinha parte de cristã-nova por seu avô materno, Diogo de Morais e como tal foi confrontada na sentença”. Além de que, sendo julgada por culpas de judaísmo, ela saiu em auto onde abjurou de leve.
7 – Catarina do Sil, irmã dos anteriores, 23 anos, solteira mas prometida em casamento a Gonçalo de Morais Beça quando foi presa. Do seu processo transcrevemos apenas um excerto dizendo que uma camisa de linho que fosse tecida e costurada por 9 Marias tinha o poder de livrar as pessoas de morte violenta. Mas vejam este naco saboroso de prosa:

- E estando as 10, por conselho de sua tia Maria de Morais, ficaram esta e as ditas pessoas e mandaram tecer e cortaram e fizeram no mesmo dia uma camisa de pano de linho cru, por se dizer que era boa para preservar de morte violenta e de outros males a quem a trouxesse vestida, sendo fiada e tecida por 9 Marias (…) era para a darem ao dito seu irmão dela confidente, Francisco de Morais, agora preso, o qual naquele tempo andava muito receoso que o matasse ou mandasse matar Domingos Afonso Galegos, governador da cavalaria da província de Trás-os-Montes, por se dizer que entrara em casa deste a ter conversação ilícita com uma mulher mulata, do mesmo (…) e depois da dita camisa feita e acabada, a levaram ela confidente e as outras 9 mulheres no mesmo dia à noite à igreja da Misericórdia da própria vila, onde tocaram com ela nos pés de uma imagem de Cristo Nosso Senhor que costuma ir com a cruz às costas na procissão dos Passos e depois a mandaram ao dito seu irmão que naquele tempo assistia homiziado no mosteiro dos frades de S. Francisco da Torre de Moncorvo. (7)

António Júlio Andrade
Fernanda Guimarães
Fotografias cedidas pelo Museu Municipal Berta Cabral
NOTAS:
1 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2804, de Pedro de Morais do Sil.
O tio Francisco de Morais era feitor e recebedor da alfândega de Freixo de Espada à Cinta, terra onde casou.
O avô materno, Pedro do Sil, foi meirinho da correição de Torre de Moncorvo.
A origem da família Sil é exactamente o lugar de Sil, junto à ribeira do Sil, na Galiza.
2 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 8749, de António de Morais Sil.
3 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2040, de Maria de Aguirre.
4 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 501, de António de Morais Sil.
5 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 2672, de Francisco de Morais de Ataíde.
6 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 9302, de Maria de Morais de Ataíde
7 – IANTT, Inquisição de Coimbra, processo 8753, de Catarina do Sil

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