quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

ESTRANHA FORMA DE VIDA (3), por Teresa Martins Marques

Sendim - Apresentação do livro " Norteando"
ESTRANHA FORMA DE VIDA (3)
«Vinte Escudos»
Deixo aqui um curto excerto da biografia de Amadeu Ferreira, que vou publicar em breve. Este menino que foi o melhor aluno do seu curso, vice- presidente da CMVM, autor do Código de Valores Mobiliários, pensava assim aos 11 anos:


"No seminário eram todos pobres, mas havia alguns ainda mais pobres que os outros. «Nós não tínhamos dinheiro connosco, mas havia miúdos que tinham dinheiro com eles e os padres deixavam ter algum dinheiro. De vez em quando, os padres vendiam algumas coisas tais como borrachas, lápis. Os livros eram encomendados por eles e eram metidos na conta que depois era mandada no fim do trimestre para os pais pagarem. Essas contas trimestrais incluíam também a lavagem da roupa, a alimentação e a estadia. Portanto, nós não precisávamos de dinheiro. Mas havia miúdos que tinham algum dinheiro e compravam algumas coisas. E aquilo impressionava-me muito.
Como é que era possível miúdos tão pequenos gastarem dinheiro, se os pais não tinham dinheiro? Porque eu nunca tinha dinheiro, desde miúdo. Não me lembro, quando entrei para o seminário, e antes disso, de ter tido um tostão no bolso, a não ser uma vez. Um primo meu deu-me vinte e cinco tostões. Veio da Índia e eu nunca me tinha visto com cinco coroas na mão e tinha vontade de comprar fruta. Fui ao soto (loja de comércio, em mirandês) do Tio Rechas e comprei cinco coroas de ameixas. Ele deu-me tantas ameixas que eu já não sabia o que fazer às ameixas. Em Sendim sempre houve grande escassez de fruta, nunca percebi porquê. Daí que a apetência por fruta fosse grande, sobretudo entre os miúdos. Foi a única vez que tive dinheiro. » 
A história que se segue é muito semelhante à que José Rodrigues Miguéis conta n’O Milagre segundo Salomé referindo-se à moeda que a mãe de Severino Zambujeira lhe deu antes de o mandar trabalhar para Lisboa, no final do século XIX. O futuro banqueiro acabou a emoldurar a moeda para nunca se esquecer do tempo em que foi pobre.
«Quando fui para o seminário, uma das coisas que a minha mãe me deu, para o caso de ser necessário, foram vinte escudos. Eu achava aquilo muito dinheiro e não sabia o que havia de fazer aos vinte escudos. Andava com eles sempre naquele bolsinho do casaco, com medo de os perder e até tinha um alfinete de segurança com que tapava o bolsinho, para não os perder. Até uma vez um dos padres gozou comigo, chamando-me alfaiate, porque eu usava esse alfinete.» Esse padre, de quem Amadeu haveria de tornar-se mais tarde amigo, era o Padre Belarmino Afonso. Foi director do Arquivo Distrital e da revista Brigantia, por ele fundada. «Eu achava que o melhor que podia fazer com os vinte escudos era comportar-me de tal maneira que, quando regressasse no Natal, chegasse à minha mãe e dissesse, “Estão aqui os vinte escudos. Não os gastei”! E assim foi. Lembro-me de chegar ao Natal e de lhe ter dito: “Estão aqui os vinte escudos. Consegui não os gastar.” Ao contrário dos colegas, para meu grande orgulho, a grande contenção, a grande disciplina, era chegar lá, saber que os meus pais não tinham dinheiro, que aqueles vinte escudos significavam muito para eles e poder dizer assim: “Estão aqui! Tome-os outra vez que eu não os precisei.”»



Fonte: Facebook de Teresa Martins Marques - 
https://www.facebook.com/teresa.martinsmarques?ref=ts&fref=ts

Ouvir: https://www.mixcloud.com/Radiovizela/hora-da-poesia-07012015/

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